TECNOLOGIA –
A VERDADEIRA HISTÓRIA DO TETRIS
Ela não teve tiros, perseguições, beijos nem outras coisas que aparecem no filme da Apple. Mas teve geopolítica, pirataria, colapso da URSS — e um aquário que chamou a atenção da Microsoft. Conheça a saga do segundo gamemais popular de todos os tempos — contada por seu criador.
Texto Fernanda Ezabella e Bruno Garattoni
UMA ESPIÃ SEXY, um comunista malvado, pancadaria rolando solta e uma perseguição
maluca de carros pelas ruas de Moscou. O filme sobre a história do jogo Tetris, lançado em
março no serviço Apple TV+, está cheio de clichês de ação. “E um filme de espionagem
turbinado”, diz Alexey Pajitnov, rindo. Ele é um senhor bonachão de 68 anos, que se expressa
em inglês macarrônico, e o inventor de Tetris: o segundo game mais popular de todos os
tempos, com 520 milhões de cópias vendidas (só atrás da franquia Mario). E isso sem contar as
versões piratas, disponíveis em mais de 50 plataformas.
A perseguição de carro não aconteceu. Mas a espiã é real — e as trapaças milionárias
também. Pajitnov criou Tetris em junho de 1984, nas horas vagas do seu trabalho como
programador de software na Academia de Ciências de Moscou. “Era só uma brincadeira, não
havia grandes ambições”, conta ele em uma conversa por vídeo da sua casa no subúrbio de
Seattle (EUA), onde mora hoje. Quando inventou o jogo, ele tinha 29 anos e estava na
Academia há cinco. Conseguiu o emprego após completar o mestrado em matemática no
Instituto de Aviação de Moscou. Pajitnov se interessava por quebra-cabeças desde a
adolescência, embora a educação não fosse muito empolgante. “Havia muita ideologia, muita
besteira para estudar e atividades muito, muito idiotas. Eu tentava ficar longe disso, mas era
inevitável”, diz.
Na Academia de Ciências, o modus operandi soviético se manifestava em um sistema
de trabalho rígido, altamente hierarquizado. Mas era uma das melhores instalações científicas
da URSS, dedicada aos avanços de tecnologia espacial e nuclear. “Os chefes diziam e você
obedecia. Francamente, não era tão ruim, não tenho muito do que reclamar.”
Pajitnov trabalhava no centro de computação da Academia, onde desenvolvia
softwares em duas áreas incipientes: reconhecimento de voz e inteligência artificial. “Era
trabalho teórico. Nós usávamos poucas centenas de kilobytes de memória”, diz. “O melhor
que consegui fazer foi comandar as pecinhas de Tetris com a voz: ‘esquerda, esquerda,
esquerda, soltar!”, lembra ele, animado. “Essa versão [com comandos de voz] nunca deixou
meu computador”, conta ele.
Pajitnov também recebia em sua mesa vários gadgets para testar. Tetris veio de uma
dessas novidades: o Elektronika-60, um computador soviético com processador de 16 bits, 128
kilobytes de memória RAM e disquetes para armazenamento. Para a época, era bem
interessante — e, o melhor, Pajitnov podia usá-lo à vontade (naquele tempo, era preciso
marcar hora para utilizar os computadores, grandes mainframes que – também no Ocidente –
tinham de ser compartilhados pelos pesquisadores ou funcionários de empresas).
Ele começou a escrever programas para testar o Elektronika. Surpreendeu-se com o
resultado, e foi ficando ambicioso. “Decidi que queria criar um jogo para dois usuários, algo
sofisticado, como um jogo de xadrez. Eu coloco uma peça, você coloca outra e por aí vai. Tive
um sonho que poderia usar pentaminós para criar esse jogo. Peraí, deixa eu te mostrar.”
Pajitnov se levanta para pegar na prateleira uma caixa desse jogo, e exibir as peças
vermelhas na câmera do computador. Pentaminó é um quebra-cabeça geométrico inventado
na Inglaterra, no começo do século 20, que se tornou popular em muitos lugares, inclusive na
URSS.
Ele tem peças de madeira de 12 formatos diferentes, cada uma formada por cinco
quadradinhos. “Você joga como se fosse um quebra-cabeça, vai criando configurações
diferentes.” O problema maior, diz Pajitnov, é na hora de guardar as peças de volta na caixa.
“Aí você está ferrado, porque é muito difícil encaixá-las”, brinca.
Para simplificar o jogo no computador, as pecinhas foram reduzidas para sete
formatos em vez de 12, com cada uma formada por quatro quadrados em vez de cinco.
Pajitnov criou a palavra Tetris juntando essa característica (“tetra” é quatro em grego) com o
nome do seu esporte preferido, o tênis. Como o Elektronika-60 não tinha interface gráfica e só
exibia texto, Pajitnov usou letras para formar as pecinhas, que caíam da parte de cima da tela
até formar linhas na parte de baixo. A ideia de fazer as linhas completadas desaparecerem veio
depois. ‘Levei umas três semanas até ter algo jogável”, lembra. Aí, imediatamente ficou
viciado. “Eu não conseguia parar de jogar, e meus colegas também não.”
Tetris chamou a atenção, e cópias do jogo foram distribuídas nos países do bloco
soviético. Até que, em 1988, uma cópia acabou indo parar na feira Consumer Electronics Show,
em Las Vegas. Lá, o empresário e desenvolvedor de jogos holandês Henk Rogers se encantou
com o game — e foi até a URSS atrás dele.
Com a cara (de pau) e a coragem, viajou para Moscou sem conhecer ninguém ou
qualquer reunião marcada. No lobby de seu hotel havia uma moça que se dizia tradutora e o
ajudou a chegar ao local certo, o Ministério do Comércio Exterior. Ela era, como mostrado no
filme, uma espiã. E Rogers sabia disso: “Todos os intérpretes à espera no hotel eram da KGB.
Mas ela era linda e divertida, enquanto os outros pareciam moribundos e tristonhos”, disse ele
ao jornal inglês Guardian.
Mas o resto da história da espiã, que inclui um beijo na boca, é delírio hollywoodiano.
A verdade é que foram dias longos, com negociações demoradas e meticulosas entre Rogers e
Nikolai Belikov, o chefão da Elektronorgtechnica (Elorg), agência estatal responsável pelo
comércio de hardware e software. Foi aí que o animado Rogers conheceu o tímido Pajitnov.
“De cara gostei da atitude dele. Ele não tentava esconder nada e logo colocou as
cartas na mesa. Ficamos amigos rapidamente”, conta o russo. “Foi o primeiro desenvolvedor
de jogos que conheci — essa profissão não existia no meu país. Então eu estava animado. Era
uma chance de discutir tudo sobre o jogo e outros títulos.”
Mas na mesa de negociações entre Rogers e a Elorg, monitorada por uma comitiva de
dez autoridades russas,” Pajitnov não apitava nada; era só um consultor. Como não existia
propriedade intelectual na URSS, e Tetris havia sido desenvolvido num computador do
governo, o russo preferiu evitar dor de cabeça e cedeu os direitos ao Estado por dez anos. “Eu
não teria chance se tentasse ir atrás de dinheiro. E sabia que o jogo era bom. Queria que fosse
publicado e não esquecido”, lembra.
No filme, Pajitnov vive maus bocados por se aproximar demais de Rogers. Chega até a
perder o apartamento. Durante nossa conversa, o russo ri disso — que é mera ficção. “O
roteirista me perguntou o que seria uma situação fundo do poço para mim, e nós conversamos
até chegar nessa solução.” Mas e os apuros de Belikov? No filme, o diretor da Elorg leva uma
surra por se opor a Valentin Trifonov, um burocrata malvado que tenta desviar os direitos do
game.
“Ah, não, era só um joguinho Fala sério!”, responde Pajitnov. Na vida real, não só
Belikov não apanhou, como se deu bem. Quando a URSS acabou, ele transformou Elorg numa
empresa privada e recebeu direitos autorais sobre as vendas de Tetris até 2005, quando sua
firma foi comprada por Rogers e Pajitnov por US$ 15 milhões (US$ 23 mihões em valores
atuais). Valentin Trifonov, por sua vez, não existiu. (Mas o nome sim: é de um político que
participou da Primeira Revolução Russa, em 1905.)
Assim que o Ocidente descobriu Tetris, houve uma guerra para obter os direitos
comerciais do jogo em várias plataformas (PC, consoles, fliperamas etc.). O filme mostra
bastante isso, mas de forma pouco precisa — e aqui há algumas pecinhas para encaixar.
O empresário britânico Robert Stein havia se deparado com o jogo em 1986, numa
viagem à Hungria, país do bloco soviético onde Tetris se espalhava via cópias piratas. Stein
tentou contato com o governo soviético, mas não teve resposta — e aí fez uma proposta, de
10 mil libras, diretamente para Pajitnov. Antes mesmo de fechar negócio, saiu revendendo
licenças do jogo mundo afora. “Ele considerou um telex (tipo primitivo de fax] meu como um
consentimento total para publicar Tetris, o que achei uma trapaça”, diz Pajitnov. “Eu só
comentei que estávamos na expectativa. Não era um contrato.”
Stein repassou os direitos à Mirrorsoft, do magnata inglês Robert Maxwell (dono do
tabloide Daily Mirror, uma potência editorial na época). A Mirrorsoft, por sua vez, revendeu-os
para a Spectrum Holobyte e para a Atari. “O jogo chegou a computadores da Europa toda, e
nada foi pago”, diz Pajitnov, que aparentemente não guarda rancor. “Eles fizeram um bom
trabalho no lançamento. Criaram uma embalagem, colocaram musiquinha, e eu até ganhei um
prêmio numa competição de jogos na Europa.”
No filme, Robert Maxwell se encontra com o líder soviético Mikhail Gorbachev, para
pressioná-lo em troca dos direitos exclusivos sobre Tetris. “A pressão política de Maxwell era
enorme. Tinha gente com medo até de falar com ele”, lembra Pajitnov. Na vida real, a reunião
de Maxwell com Gorbachev chegou a ser marcada, mas não aconteceu — foi cancelada após
um terremoto na Armênia, que desviou a atenção do líder soviético. No fim das contas,
Maxwell ficou apenas com os direitos do jogo para PC.
As primeiras versões ocidentais de Tetris se aproveitavam do fascínio com o país
escondido na cortina de ferro. A exuberante Catedral de São Basílio e bonecas matryoshkas
apareciam nas telas e nas propagandas do jogo, bem como uma musiquinha que se tornou
sinônimo do game (e é, na verdade, uma canção folclórica russa do século 19). Pajitnov achou
tudo aquilo meio brega, mas entendeu a lógica.
Após sua visita à URSS, em 1988, Henk Rogers ficou com os direitos para os consoles
de videogame. Ele ofereceu US$ 1,2 milhão em royalties garantidos para a Elorg, mais US$ 1,30
a cada cartucho vendido (em valores atualizados). Isso não é nada pelos padrões do mercado
de hoje; mas era muito mais do que o rival Stein havia oferecido. Rogers repassou a licença
para a Nintendo. Só que havia um problema: Maxwell já tinha vendido à Atari os direitos de
Tetris para videogames — que ele na verdade não possuía.
O filme mostra as duas empresas brigando no tribunal, com vitória da Nintendo. Isso
aconteceu, mas inicialmente a Atari levou a melhor: chegou a lançar o jogo para o console
Nintendo 8 bits. Um mês depois, a Justiça dos EUA mandou a empresa recolher e destruir
todos os cartuchos de Tetris — que, a partir dali, só a própria Nintendo poderia fabricar. O
console portátil Game Boy, lançado pela Nintendo em 1989, já veio com Tetris na caixa. O
game foi decisivo para transformá-lo em um fenômeno — nos primeiros três anos, o Game
Boy vendeu 9 milhões de unidades só nos EUA.
Mas Pajitnov ainda não tinha recebido nada pelo game. Continuava na mesma. Quer
dizer, na mesma não: a União Soviética vivia seus últimos dias, e a vida dos russos piorava
rapidamente. Aí Pajitnov emigrou para os EUA: foi trabalhar com o amigo e parceiro Henk,
produzindo games. Fez um software chamado El-Fish, uma espécie de screensaver que
transformava a tela do computador em aquário, e acabou contratado pela gigante Microsoft.
"Todo mundo reclamava da burocracia da Microsoft. Mas comparada à do meu país, não era
nada", diz, com bom humor. Pajitnov tocou cinco projetos na empresa de Bill Gates (incluindo
Pandora's Box, um programa para PC que incluía 350 puzzles), na qual ficou até 2005. Sua
última obra por lá foi Hexic HD, uma espécie de releitura do Tetris desenvolvida para o console
Xbox. Lembra bastante o megassucesso gratuito Candy Crush, que seria lançado uma década
depois (e já foi baixado mais de 2,7 bilhões de vezes).
Hoje, Henk e Pajitnov são donos da Tetris Company, que administra os direitos
comerciais do game. Ele continua um fenômeno — tem até um campeonato mundial,
disputado todo ano nos EUA. O maior vencedor é o americano Jonas Neubauer, com sete
títulos nas 13 edições (só não foram mais porque Neubauer morreu de problemas cardíacos
aos 39 anos, em 2021). Há várias estratégias para jogar. Nos últimos anos foram surgindo
novas técnicas, como o hypertapping (apertar o controle muitas vezes para mover as peças
mais rápido) e o t-spin — girar a peça "T" no último segundo, para encaixá-la num espaço
apertado.
Em Tetris 99, lançado em 2019 para o Nintendo Switch, finalmente se tornou possível
jogar online, contra qualquer pessoa — justamente o que Pajitnov queria fazer, lá no começo
dos anos 1980. Nesse modo, a cada vez que você completa e elimina uma linha, ela vai para a
tela do adversário, complicando a vida dele. Pajitnov adora jogar assim, mas diz que não é
muito bom. "Você precisa escolher uma estratégia e focar nela. Mas o meu estilo, e que eu
recomendo, é só jogar e se divertir." É inevitável: uma hora você não vai mais conseguir formar
as linhas e eliminar as pecinhas. Aí o tabuleiro transborda, e o jogo acaba. O desfecho é
sempre o mesmo. A graça está no caminho que leva até ele — tanto em Tetris quanto na vida.
COMO JOGAR BEM As estratégias do americano Jonas Neubauer, sete vezes campeão mundial.
1- SEJA DENSO – Faça blocos compactos com encaixes perfeitos - mesmo que isso acabe
formando pilhas altas e deixando um vazio ao lado. Eventualmente, o jogo dará a você uma
peça que se encaixa perfeitamente no "poço" - e você completará várias linhas e uma só vez.
2- APRENDA A GIRAR – Rotacionar as pecinhas, enquanto elas estão caindo, é essencial para
jogar bem. Tente se lembrar de que você pode girar cada uma no sentido horário ou anti-
horário. Iniciantes costumam girar as peças só no sentido horário, desperdiçando cliques e
tempo. 3- ANTECIPE AS LANCES – O jogo mostra, em uma janelinha no canto direito da tela,
qual peça você receberá em seguida. Crie o hábito de olhar para essa janelinha assim que
possível (quando a peça atual ainda estiver caindo). Você ganha tempo, e já se prepara para a
próxima peça. 4- VELOCIDADE > PERFEIÇÃO – As suas decisões não têm de ser perfeitas. É
melhor ser capaz de agir rápido especialmente quando as peças começam a cair mais
depressa. "Um mestre de Tetris pode olhar um menu [de restaurante], e escolher em menos
de 10 segundos", disse Neubauer. 5- FIQUE CALMO – "De vez em quando, você vai errar. Não
entre em pânico. É só construir em volta." Vá preenchendo os espaços ao lado do "buraco"
que se formou, e uma hora você conseguirá desfazer a lacuna.
TECNOLOGIA DO METAVERSO
A ideia de que estava para surgir um mundo virtual
unificado e totalmente imersivo impulsionou um mercado bilionário de propriedade digital e
fez o Facebook mudar de nome. Parecia o início de uma nova era. Mas não rolou. Entenda o
que deu errado, o que vingou de fato — e se o conceito de metaverso ainda tem futuro. Texto
RAFAEL BATTAGLIA Edição: ALEXANDRE VERSIGNASSI
“SERÁ O SUCESSOR DA INTERNET MÓVEL”, disse Mark Zuckerberg sobre o metaverso
em outubro de 2021 durante a Connect, a conferência anual do Facebook voltada à realidade
virtual.
“Isso é muito Black Mirror”, disse provavelmente qualquer um que assistiu àquela
apresentação. Durante uma hora, Zuckerberg navegou por hologramas, jogos imersivos e
festas virtuais repletas de avatares para mostrar como a tecnologia poderia, no futuro, mudar
a maneira como as pessoas trabalham, estudam, fazem exercícios — e se relacionam.
A aposta foi alta. “Todos os nossos produtos, incluindo aplicativos, agora
compartilham uma nova visão: ajudar a dar vida ao metaverso.” Para concretizar a decisão,
Mark anunciou que a empresa-mãe do Facebook (dona também do WhatsApp e do Instagram)
estava mudando de nome para Meta.
O anúncio balançou o mercado de tecnologia — e não demorou para que outras
empresas do setor abraçassem a ideia: em janeiro de 2022, a Microsoft adquiriu a
desenvolvedora de jogos Activision Blizzard (Call of Duty, World of Warcraft, Candy Crush) por
US$ 68,7 bilhões, sob a justificativa de que o acordo ajudaria a gigante a construir o seu
próprio metaverso.
Em 2022, um relatório da consultoria McKinsey estimou que o metaverso poderia
movimentar US$ 5 trilhões até 2030. O Citibank foi ainda mais longe: US$ 13 trilhões (para
comparar, todo o PIB anual do Brasil é de “apenas” US$ 2 tri).
A apresentação de Zuckerberg foi também uma espécie de manifesto. O bilionário
ressaltou que o metaverso não seria construído apenas pela Meta — e sim por um esforço
coletivo das empresas tech. Ele advertiu que os investimentos seriam altos e não teriam
retorno imediato — mas que a tecnologia se estabeleceria em um prazo de cinco a dez anos.
Ao que parece, ninguém quer esperar tanto tempo assim.
Menos de dois anos após o anúncio da Meta, o interesse pelo metaverso minguou. A
Microsoft fechou o AltspaceVR (ambiente de realidade virtual adquirido pela empresa em
2017) e demitiu vários funcionários ligados ao HoloLens, seu óculos VR. Disney e Walmart, que
haviam iniciado projetos na área, também andaram para trás. Nos primeiros cinco meses de
2023, os investimentos em startups de metaverso somaram US$ 664 milhões — uma queda de
77,4% em relação ao mesmo período de 2022 (US$ 2,9 bi).
Na Meta, a divisão Reality Labs, de realidade virtual, perdeu US$ 13,7 bilhões em
2022. A empresa, que havia anunciado 10 mil vagas na Europa voltadas ao metaverso, fez o
contrário: cortou 10,6 mil pessoas (de diversas áreas) desde o início de 2023, em três rodadas
de demissões. A companhia chegou a valer US$ 1 trilhão em 2021. Agora, é cotada em mais
modestos US$ 700 bi.
O metaverso implodiu? Existe algum futuro para ele? E o que significa metaverso,
afinal? É o que veremos nas próximas páginas.
MEIO SCI-FI, MEIO REALIDADE
O metaverso é a convergência de duas ideias que existem há décadas: realidade
virtual e a de uma segunda vida digital. A palavra apareceu pela primeira vez em 1992 no livro
Snow Crash, do escritor americano Neal Stephenson (“meta” vem do grego e significa “além”).
Na obra distópica de Stephenson, um mundo virtual serve de refúgio às pessoas
depois que a economia global colapsou. É uma “avenida” com 6 mil km de extensão (cinco
vezes o diâmetro da Terra), onde vivem 120 milhões de avatares.
Snow Crash virou um queridinho do mundo tech. O livro inspirou os criadores do
Google Earth (há uma versão fictícia do app no romance, imaginada obviamente bem antes da
versão real). Também era leitura obrigatória para os desenvolvedores do Xbox. Stephenson
popularizou o metaverso — mas não foi o primeiro a escrever sobre o conceito.
Em 1935, um conto do escritor Stanley G. Weinbaum já detalhava uma invenção bem
parecida com um óculos VR. Nas décadas seguintes, Isaac Asimov, Philip K. Dick, William
Gibson e outros pesos-pesados da ficção científica escreveram suas próprias versões de
realidades digitais alternativas.
Nos anos 1970, surgiram os MUDs, primeiros jogos de RPG para computador. Eram só
texto na tela, mas já ofereciam ao jogador algum nível de controle sob um mundo virtual. Em
1986, a Lucasfilm (empresa por trás de Star Wars) lançou Habitat, um jogo para o computador
Commodore 64 em que era possível criar visualmente ambientes e personagens (num 2D
pixelado, mas já estava valendo).
No mundo de Habitat, os usuários definiam as leis e tinham de negociar recursos para
sobreviver. Foi um sucesso. Chegou a ter quatro milhões de jogadores (que se conectavam via
linha telefônica), e foi o responsável pela popularização do termo “avatar” para se referir ao
“corpo” virtual de alguém (a palavra vem do sânscrito e tem a ver com a manifestação de
divindades hindus na Terra).
O sucessor mais notório de Habitat foi o Second Life, lançado em 2003. A Linden Labs,
empresa responsável pelo game, nunca o definiu como tal — mas como um ambiente 3D em
que usuários (os “residentes”) são capazes de reproduzir todos os aspectos cotidianos:
estudar, trabalhar, passear, namorar.
No Second Life, dava para ter aulas de esqui, viver como um samurai e frequentar
galerias de arte. Todas as transações (de imóveis, produtos e serviços) eram feitas com uma
moeda própria, o dólar Linden (L$) — que podia ser trocado por dólar de verdade.
O trunfo do Second Life foi atrair empresas de vários setores — que viram na
plataforma a chance de ganhar dinheiro no mundo real. Amazon, Sony, Adidas e Disney foram
algumas das multinacionais que apostaram nesse metaverso. A Nissan, por exemplo, instalou
uma concessionária virtual para vender cópias digitais de seus carros. A agência de notícias
Reuters fundou um “escritório” para cobrir o que acontecia por lá. E Harvard ofereceu um
curso de direito exclusivo.
Em 2006, a jogadora Ailin Graef foi capa da revista Business Week após ter conseguido
lucrar US$ 1 milhão vendendo terrenos virtuais no Second Life. No ano seguinte, a Linden Labs
criou um mercado de ações para dar um gás nas empresas que operavam ali. Em 2009, a
economia da plataforma era avaliada em meio bilhão de dólares — e usuários transformaram
seus L$ ganhos ali em US$ 55 milhões no mundo real.
O hype, contudo, passou. Para rodar bem, o Second Life exigia bons processadores e
placas gráficas — coisa rara na primeira década do século 21. Além disso, era um ambiente
pouco seguro: notícias falsas, tentativas de golpe e falhas de privacidade eram recorrentes. A
plataforma existe até hoje — só que mal se ouve falar dela.
AS APOSTAS RECENTES
Em 2015, O Facebook comprou a Oculus VR, fabricante de dispositivos de realidade
virtual, por US$ 2 bilhões. A empresa estava de olho no Oculus Rift, uma das grandes apostas
do mercado de videogames. Em 2019, lançou a linha de óculos Quest e anunciou a produção
de Horizon Worlds, o metaverso da empresa (que ainda não tinha essa alcunha, diga-se, e seria
lançado em 2021).
Enquanto isso, outras plataformas começaram a despontar na rede: os metaversos
baseados em NFTs.
Você deve ter ouvido falar que NFT é a sigla em inglês para “token não-fungível”. Tá, e
daí? “Token” significa objeto virtual. “Não-fungível” é “não substituível” — algo como a
escritura de uma casa. Um NFT, então, é justamente isso: um objeto virtual com escritura. Se
você adquiriu um objeto com registro NFT, ele pertence a você.
As NFTs só são possíveis graças às redes de blockchain, que surgiram para registrar
transações envolvendo criptomoedas de forma eterna — e inviolável. A primeira rede dessa
linha a desenvolver um sistema para emitir essas escrituras digitais foi a Ethereum, cuja
moeda, que também se chama Ethereum (ETH), é a segunda maior cripto do mundo: US$ 227
bilhões de valor de mercado; perde apenas para o Bitcoin (US$ 529 bi).
As NFTs viralizaram entre 2021 e 2022 muito por conta das artes digitais: galerias
online comercializavam “JPEGs com escritura” a preços altíssimos, dada a exclusividade da
coisa (igualzinho ao mercado de arte do mundo real). Mas elas também despontaram em
outro setor: o de metaversos com terrenos virtuais à venda.
Esses metaversos são ambientes virtuais “descentralizados”. Isso porque os
“registros” dos terrenos não ficam armazenados em um único servidor central, mas
espalhados em máquinas de milhares de usuários (essa é outra essência das redes de
blockchain, além da inviolabilidade). Nesses metaversos, há uma quantidade finita de “terra
disponível para construir casas, shoppings, cassinos, museus...
Qualquer um pode comprar e vender esses lotes — há, inclusive, imobiliárias
especializadas em propriedades virtuais. A lógica é a mesma do mundo real: nas áreas mais
movimentadas do metaverso, os terrenos custam mais; nos “subúrbios”, menos. Também dá
para comprar e vender acessórios de avatares via NFT.
As transações acontecem via cripto. Os metaversos mais célebres dessa linha são o
Decentraland e o The Sandbox, lançados em 2020. E cada um possui a sua própria moeda: a do
Decentraland é a MANA e funciona na rede do Ethereum; a do Sandbox é a SAND e opera em
outra rede, a da Binance.
O interesse em torno de Decentraland, Sandbox e cia. cresceu após o anúncio da
Meta, em 2021. Assim como o Second Life, esses metaversos atraíram grandes marcas e gente
interessada em fazer dinheiro. O Decentraland, por exemplo, vendeu por US$2,4 milhões um
terreno no seu distrito de moda. Atraiu patrocínio de empresas como Nike, Louis Vuitton e
Burberry. No auge, chegou a valer US$ 1,4 bilhão.
O Sandbox, por sua vez, recebeu eventos das grifes Gucci e Balenciaga e alcançou US$
1,3 bilhão em valor de mercado. É nessa plataforma que aconteceu a maior venda de um
terreno virtual até agora: o equivalente a US$ 4,3 milhões por um naco de metaverso, em
2021.
Só tem um problema: as transações que acontecem nessas plataformas são altamente
especulativas. Quem entra nesse negócio espera que os terrenos se valorizem para que, no
futuro, possam revender a um preço maior.
Vale o mesmo para as criptos envolvidas. Como a MANA e a SAND são emitidas pelas
companhias por trás desses metaversos, a cotação delas no mercado significa dinheiro em
caixa para essas empresas. Em 2021, a MANA chegou a subir de US$ 0,08 para US$ 4,80 a
unidade. Uma alta de 5.900%. A SAND, de US$ 0,04 para US$ 7,53, 18.725%. Só que o valor das
criptos necessárias para comprar os terrenos depende de o assunto “metaverso” se manter
em alta. Do contrário, essa óbvia bolha estouraria.
E foi exatamente o que aconteceu.
O FIM DO HYPE
Na segunda metade de 2022, o Facebook já tinha vendido 15 milhões de cópias do seu
óculos de VR Quest 2 (no momento, as vendas estão em 20 milhões). Contudo, só havia 300
mil usuários ativos no Horizon Worlds (hoje, menos ainda: 200 mil). O que aconteceu?
O Horizon tinha bugs frequentes. Além disso, os gráficos eram inferiores ao que a
Meta havia prometido. Em um caso emblemático, Mark Zuckerberg tirou uma “selfie” do seu
avatar dentro do jogo para divulgar que o serviço estava se expandindo para França e Canadá
(nunca chegou ao Brasil). O visual do personagem, que parecia saído de um game do começo
dos anos 2000, virou piada.
Em outubro, uma reportagem do The New York Times ouviu funcionários da Meta e
deu detalhes sobre o clima conturbado da empresa. Aquela altura, 42% dos trabalhadores não
entendiam as estratégias da companhia sobre metaverso. As principais reclamações vinham da
alta rotatividade e da troca de funcionários à medida que os objetivos de Zuckerberg
mudavam. Eram poucos os funcionários que de fato usavam o Horizon Worlds.
“Se nós não amamos o nosso produto, como esperar que os usuários o amem?”, disse
Vishal Shah, vice-presidente da divisão de metaverso da companhia, em um comunicado
interno — não era uma crítica, mas um pedido pela maior presença dos empregados da Meta
dentro do Horizon. Pelo jeito, não era o que bastava para a coisa engrenar.
Em 2022, o mercado perdeu a paciência com os maus resultados do Horizon. A Meta
perdeu dois terços do seu valor de mercado, fechando o ano em US$ 320 bilhões. Se o
metaverso de Zuckerberg ia mal, imagine os outros. No final do ano passado, uma pesquisa do
DappRadar, empresa que monitora dapps (apps descentralizados, na sigla em inglês), mostrou
que os metaversos de NFTs estavam vazios: o Decentraland tinha 650 usuários ativos por dia;
The Sandbox, Só 522.
As empresas alegaram que as informações estavam incompletas: a Dapp só
contabilizou as transações diárias de NFTs (e não se espera mesmo que todos lá dentro façam
comércio de itens todos os dias). O Decentraland disse que o número real de usuários era de 8
mil por dia; o Sandbox, 39 mil. Mesmo assim, era pouco de qualquer jeito. As cotações da
MANA e da SAND, que já vinham em queda desde 2021, despencaram de vez. Hoje, ambas
estão abaixo de US$ 0,50. Os lotes virtuais, consequentemente, baratearam. O preço médio do
“metro quadrado” no Decentraland, por exemplo, tombou de U$ 6.000 em 2021 (o dobro do
Leblon) para US$ 5. Mas fica a pergunta: você quer mesmo gastar o seu dinheiro com isso?
UM FUTURO REALISTA O prejuízo no plano do metaverso não foi a única causa da
desvalorização da Meta. Já faz algum tempo que a empresa enfrenta desafios para manter
usuários — e ganhar dinheiro com eles. A concorrência do TikTok afastou os mais jovens do
Instagram e praticamente sepultou o Facebook, que mesmo antes do app chinês já tinha
desabado na preferência desse público. E uma mudança nas configurações de privacidade da
Apple no início de 2022 fez com que as redes sociais da Meta passassem a receber menos
dados de cada perfil que as acessava pelos aparelhos da empresa da maçã. Isso dificultou a
venda de anúncios, que é de onde vem a grana da Meta.
O metaverso, então, era a aposta da companhia para uma nova fonte de renda. O
problema, talvez, tenha sido colocar todos os ovos numa única cesta. Para Matthew Ball,
consultor e autor do livro A Revolução do Metaverso, a atitude da empresa estimulou
previsões irreais sobre quando a tecnologia deslancharia. “O foco intenso no metaverso em
um curto período de tempo, com alguns argumentando que ele já estava aqui (ou estava
prestes a acontecer), desapontou muita gente”, disse Ball ao New York Times.
No início de 2023, Zuckerberg estabeleceu o “ano da eficiência”, para a Meta. Além de
enxugar o quadro de funcionários, o CEO anunciou investimentos em inteligência artificial. Em
uma carta aberta divulgada no final de março, ele falou sobre os planos da empresa para
incorporar a IA em seus produtos. Mark também citou o metaverso — mas com muito menos
ênfase. A nova postura ajudou a Meta a recuperar terreno, com o valor de mercado subindo
daqueles US$ 320 bi para os atuais US$ 700 bi.
Game over para o metaverso? Não dá para cravar. No começo de junho, a Apple
lançou o Vision Pro, o seu óculos VR em desenvolvimento há sete anos. O gadget, que será
vendido a US$ 3,5 mil, é um aparelho de “realidade mista”: funciona tanto em realidade virtual
(100% imersiva, como o Quest da Meta) quanto em realidade aumentada, com elementos
sobrepostos ao ambiente (tipo Pokémon Go). A altíssima resolução das imagens (60 vezes
maior que a tela do iPhone) pode dar um novo boost ao conceito de metaverso. Mas isso só o
tempo dirá.
O mundo dos games é o que oferece um futuro plausível para o metaverso. Criado em
2006, o Roblox é uma plataforma de interação via avatares que permite criar novos mundos (e
jogos dentro deles). Trata-se de um fenômeno: possui 66 milhões de usuários ativos (a maior
parte deles, jovens de até 13 anos); a cada dia, os usuários criam 15 mil novos joguinhos
(chamados de “experiências”).
Dá para acessar o Roblox via computador, dispositivo móvel ou do Xbox. Os planos de
expansão da empresa almejam experiências online mais imersivas. Mas a companhia é
cautelosa, e já afirmou que um metaverso pleno ali dentro ainda está longe.
A Epic Games também tem projetos para os metaversos dos seus jogos. Um dos
planos é desenvolver ferramentas que ajudem os usuários do Fortnite a ganhar dinheiro com
suas criações na plataforma — estimulando, assim, uma economia interna do jogo. O CEO da
Epic Games, Tim Sweeney, é um dos principais defensores de que o metaverso ainda é uma
tendência em crescimento.
O conceito por trás do termo “metaverso” inclui algo utópico: a promessa de uma
plataforma única, que englobe todas as que já existem (permitindo, assim, a livre circulação de
avatares entre elas). É por isso que o termo costuma aparecer por aí no singular, não no plural.
Mas se trata de um sonho distante. Para que ele se torne realidade, é preciso que os sistemas
conversem entre si por meio de protocolos-padrão. É o que rolou nos anos 1990, quando
consórcios internacionais de cientistas estabeleceram as bases para a internet de hoje.
As empresas tech, então, precisariam trabalhar juntas — algo pouco provável. “O
modelo de negócio da maioria dessas companhias é baseado na não-transparência’, diz
Beatrys Rodrigues, pesquisadora de tecnologias emergentes na Universidade Cornell (EUA).
Não apenas por questões de privacidade e de segurança: a fonte de renda delas vem,
justamente, dos dados que elas possuem de cada usuário. “Por que elas compartilhariam
isso?”
O problema não para por aí. A euforia do metaverso começou durante a pandemia.
Sem ter como sair de casa, a ideia de um mundo virtual imersivo parecia atraente. Pode até
ser que ele vingue no futuro. Mas não há como garantir. Se o lockdown nos ensinou algo,
afinal, é: a parte da vida que realmente importa está do lado de fora das telas.
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