PSICOLOGIA – A NEUROCIÊNCIA DO FLOW Esquecer do mundo externo, perder a noção de
tempo e ficar totalmente imerso naquilo que está fazendo. Se você reconhece essa sensação,
provavelmente já experienciou o “estado de fluxo”. Conheça o estado mental responsável pelo
sucesso de atletas e artistas — e saiba como ajudar sua mente a atingi-lo. Texto Maria Clara
Rossini Edição Alexandre Versignassi
FIZ TODAS AS RECOMENDAÇÕES que encontrei em livros e pela internet: desliguei as
notificações do celular, tentei focar ao máximo no que estou fazendo e minimizei qualquer
possibilidade de distração que me tirasse do momento presente. Para escrever este texto, me
propus a entrar em um estado mental de intensa concentração, conhecido pela psicologia
como flow, ou estado de fluxo.
Essa é a situação que combina a alta performance em determinada tarefa com o baixo
esforço para realizá-la. Quando o cérebro assume esse modus operandi, o indivíduo não vê
mais o tempo passar, fica imerso na atividade, não se preocupa com autocríticas nem pensa
em qualquer outra coisa. A tarefa que desencadeia o flow se torna recompensadora e
prazerosa por si só.
É bem provável que você já tenha experimentado o flow em algum momento da vida
— seja praticando um esporte, tocando um instrumento ou mesmo jogando videogame. O
estado de fluxo aparece no filme Soul, da Pixar: ali, as “almas” das pessoas que entram em
flow são transportadas para uma outra dimensão, onde ficam inteiramente absortas naquilo
que estão fazendo. No mundo real, as pessoas costumam se referir a esse lugar mental como
“a zona” (the zone, em inglês, o idioma original do termo).
Para entrar nessa zona invejável, o desafio da tarefa em questão não pode ser maior
que a habilidade do indivíduo — isso só geraria ansiedade e frustração por não conseguir
realizá-la. Mas também não pode ser menor, o que deixaria a pessoa entediada. O equilíbrio
entre desafio e habilidade é o segredo para atingir o estado de fluxo.
Alguns autores já tentaram traduzir o fenômeno em palavras, bem antes de a
psicologia catalogá-lo. O alemão Nietzsche apelidou a coisa de estado de Rausch —
intoxicação”. Na filosofia taoísta, a sensação está relacionada ao Wu Wei, o princípio da “ação
sem esforço”. Já quem sistematizou as características do flow como as conhecemos foi o
croata Mihaly Csikszentmihalyi, na década de 1970.
Esse psicólogo (cuja pronúncia do sobrenome é “cíkzen-mihalí”) identificou o estado
de fluxo enquanto fazia pesquisas sobre criatividade. Após conversar com músicos, atletas,
gestores e trabalhadores de fábrica, ele notou que muitos usavam a palavra “fluida” para
descrever a sensação, como se agissem guiados por um fluxo. Daí o nome.
Já entrei em flow enquanto escrevia diversos textos: é como se as palavras fluíssem
para a página, como foi descrito pelos entrevistados de Csikszentmihalyi. Mas, justamente
neste texto sobre flow, pareço estar tendo alguma dificuldade. E não é à toa. Uma das “regras”
do estado de fluxo é que ele não funciona sob demanda. Não surge quando você quer, mas
espontaneamente — e, em geral, você só percebe o que aconteceu quando sai dele.
Foi a partir de entrevistas e questionários que Csikszentmihalyi descobriu a
universalidade do flow. Agora, técnicas de neuroimagem começam a desvendar o que ocorre
no cérebro durante esse estado.
O ESFORÇO SEM ESFORÇO
Os cérebros de outras espécies de mamíferos são proporcionalmente menores
quando comparados ao nosso. Isso é explicado, em parte, por uma região chamada córtex pré-
frontal, que é mais desenvolvida nos humanos. Ela é a responsável pelo raciocínio lógico, pelo
planejamento.
Não seria absurdo pensar que os momentos de alto desempenho — seja escrever um
livro, pintar um quadro ou tocar um instrumento — exigem mais atividade dessa região do
cérebro. Olhando de fora, temos a impressão de que cada palavra, pincelada ou nota musical
foi pensada para se encaixar perfeitamente na obra.
Mas dentro do crânio do artista ocorre justamente o contrário. Estudos feitos com
ressonância magnética funcional e fNIRS (métodos distintos que monitoram o fluxo de sangue
pelo cérebro) mostram uma redução da atividade do córtex pré-frontal durante o flow. Ou
seja, Monet não decidia nem planejava onde iria cada cor de tinta — tudo funciona no modo
automático. Esse mesmo padrão cerebral está relacionado a atividades habituais, como
escovar os dentes, tomar banho, trocar de roupa. São tarefas que exigem pouquíssimo esforço
mental, mas que executamos muito bem. “A gente pode definir o flow como um estado de
maior eficiência do hábito”, diz Dráulio de Araújo, professor do Instituto do Cérebro da UFRN
que estuda estados alterados de consciência. “Não é simplesmente fazer automaticamente,
mas fazer da forma mais adequada possível.”
A menor atividade do córtex pré-frontal também significa menos “filtros” sobre
nossas ações. Quem está em flow não se preocupa com os julgamentos externos e internos —
o que torna a expressão da atividade mais intensa.
Que o diga Ayrton Senna. Em 1988, ele descreveu perfeitamente um estado de fluxo.
Na classificação para o GP de Mônaco daquele ano, Senna garantiu o primeiro lugar no grid
com 1,4 segundo de vantagem sobre o companheiro de equipe, Alain Prost — um assombro;
0,4 já seria considerado muito. “Eu já não estava dirigindo de forma consciente. Me senti em
outra dimensão. O circuito virou um túnel para mim, no qual eu só ia, ia, ia...”
Outra área da massa cinzenta que “desliga” durante o flow é o córtex cingulado
anterior. Dentre outras funções, ele está relacionado ao direcionamento da atenção. Sabe
aquele esforço para prestar atenção a uma aula ou uma reunião chata? Isso não rola no flow:
quando você entra nesse estado, o foco ocorre de forma natural, como se não houvesse mais
nada no mundo. Um enxadrista entrevistado por Csikszentmihalyi definiu bem: “O teto
poderia cair, mas, contanto que não caísse na sua cabeça, você nem ia perceber”.
O flow guarda características semelhantes ao hiperfoco: um estado de concentração
intensa, mais frequente em pessoas que fazem parte do espectro autista ou possuem
transtorno de déficit de atenção. Mas, diferente de estar concentrado em ler um livro, o
estado de fluxo exige a realização de uma tarefa ativa na qual você tenha alguma habilidade.
Não coincidentemente, as regiões do cérebro mais atuantes durante o flow são aquelas
associadas a funções motoras.
Durante esse estado mental também há picos de atividade em áreas relacionadas à
recompensa (núcleo accumbens, por exemplo). A realização da tarefa promove descargas de
neurotransmissores que causam prazer, como dopamina, serotonina, noradrenalina e
endorfinas. Não é à toa que diferentes pesquisas associam momentos de flow a maiores
índices de bem-estar, autoestima e felicidade.
Para se sentir bem durante uma tarefa, você precisa saber que está indo bem nela.
Receber um “feedback” imediato de você mesmo é outro ponto que facilita o flow: acertar as
notas enquanto toca uma partitura, capturar peças do oponente durante uma partida de
xadrez, fazer curvas fechadas de pé embaixo na classificação para o GP de Mônaco....
Como você viu no início do texto, não existe receita de bolo para entrar no estado de
flow. Mas a boa notícia é que algumas pessoas aprenderam a manuseá-lo a seu favor — e dá
para aprender com elas.
O SEGREDO DOS CRAQUES
Todo mundo pode sentir flow, mas é fato que atletas atingem esse estado com mais
frequência. “Quando as habilidades de dois atletas de alta performance empatam, quem
ganha hoje ou amanhã vai ser decidido nos detalhes”, diz Araújo. “E esses detalhes podem ser
decididos pelo estado de flow. Ali é o limite da expressão de tudo que eles treinaram e
aprenderam até o momento.”
Os desportistas levam isso a sério. O psicólogo do esporte George Mumford,
considerado o mestre do flow, já trabalhou com os maiores craques da NBA. “Eles sabem o
que é estar ‘na zona’ e o que é ‘estar em flow’. Quando eu falo sobre isso, eles são todos
ouvidos”, disse em entrevista à ABC News. Michael Jordan e Kobe Bryant já atribuíram diversas
vitórias ao treinamento que fizeram com Mumford.
O psicólogo aposta na meditação mindfulness como uma maneira de acessar o estado
de fluxo mais facilmente. Ela nada mais é do que uma técnica de meditação focada no
momento presente. Em vez de “transcender”, o principal intuito do praticante é colocar a
mente no aqui e agora.
Essa também é uma das abordagens de Aline Wolff, psicóloga que acompanha atletas
de alta performance, incluindo a ginasta Rebeca Andrade. Ela ressalta que certas práticas antes
da competição geralmente facilitam a sintonização nesse estado mental. “Se um atleta tiver
um monitoramento de metas, uma boa rotina pré-competição e praticar mindfulness se
possível todos os dias, ele terá uma tendência maior a entrar no estado de flow.”
Não é necessário ser uma lenda do basquete ou uma medalhista olímpica para seguir
passos como estabelecer objetivos claros, adotar uma rotina e meditar. Se as suas habilidades
não lhe permitem entrar em flow dando um mortal para trás, talvez você sinta o mesmo
prazer no seu emprego.
O livro Flow: a Psicologia do Alto Desempenho e da Felicidade dá exemplos de
cirurgiões, açougueiros e operários que relatam atingir esse estado durante o trabalho. Um
soldador, por exemplo, contou que consegue ter momentos de flow na fábrica ao estabelecer
pequenos recordes de tempo, que tenta bater todos os dias.
Atividades ligadas à gestão podem oferecer mais desses momentos. Uma pesquisa
buscou avaliar esse tema oferecendo um pager a 78 profissionais de diferentes áreas. O
aparelho apitava em horários aleatórios ao longo do dia: sempre que ouvisse o bipe, o usuário
deveria relatar se estava em estado de fluxo ou não. 64% dos trabalhadores na posição de
gerência relataram o flow em algum momento do trabalho, em comparação com 51% dos
funcionários de escritório e 47% dos operários.
Embora exista alguma diferença na porcentagem de flow em cada ocupação.
podemos concordar que ela não é tão grande. Desde que os pré-requisitos sejam cumpridos
(metas claras e desafio equilibrado com a habilidade), qualquer ofício pode desencadear o
estado de fluxo e, consequentemente, gerar prazer.
Por outro lado, os participantes do estudo relataram baixas taxas de flow durante os
momentos de lazer (cerca de 16%). Isso porque estamos acostumados a realizar atividades
passivas no tempo livre — e você não vai entrar em fluxo enquanto assiste TV ou vê vídeos no
TikTok.
Mas há uma atividade comum de lazer capaz de gerar enxurradas de flow — jogar
videogame. Pensa só: eles proporcionam uma experiência de imersão; estabelecem metas
claras; oferecem um feedback imediato de sua performance (você sabe se está indo bem ou
mal); e, principalmente, regulam o desafio de acordo com as habilidades do jogador (por meio
de níveis).
Os videogames se encaixam tão bem no conceito que passaram a ser usados para
desencadear o estado de fluxo em participantes de pesquisas sobre o tema (Tetris, o assunto
da pág. 46, uma das opções mais usadas). Isso também explica por que os games são tão
viciantes, principalmente para adolescentes: os jovens podem ainda não ter descoberto outras
atividades que geram flow. Obviamente, o ideal é transportar esse estado para tarefas
produtivas. De outra forma, elas serão apenas fonte de tédio.
Em suma, o estado de fluxo é maneira mais intensa de viver o presente. Lembre-se de
que o futuro é só uma criação do seu córtex pré-frontal; e que o passado são páginas viradas.
O único tempo que existe de fato é o aqui e o agora. Mergulhe nele, e deixe o fluxo te levar.
O CAMINHO DO FLOW O principal pré-requisito para atingir o estado de fluxo está resumido
no gráfico ao lado. Qualquer pessoa pode entrar em flow, desde que a tarefa proposta esteja
equilibrada com sua habilidade. – ANSIEDADE: Uma tarefa muito desafiadora gera estresse e
frustração em quem tenta realizá-la. O ideal é escolher algo de nível igual ou ligeiramente
maior que a sua capacidade. – TÉDIO: Uma vez que você adquire habilidade suficiente em
determinada tarefa, não vale ficar no mesmo nível. Não ter a sensação de progresso desmotiva
o individuo, gerando tédio em vez de flow.
REQUISITOS PARA ATINGIR O ESTADO DE FLUXO Não dá para escolher quando entrar em flow -
mas você pode começar pelos quatro pontos abaixo. - O desfio deve ser equilibrado com a
habilidade - Escolha de objetivos claros - Concentração intensa e focada no momento
presente. - Autofeedback imediato – saber se você está indo bem, na tarefa.
CARACTERÍSTICAS DO FLOW Além do envolvimento profundo na tarefa, o estado de fluxo tem
outras propriedades. - Sensação de controle sobre a ação. - Diminuição da autoconsciência e
da auto crítica. - Mudança na percepção do tempo – que pode ser dilatada ou contraída. - A
experiência se torna recompensadora por si só.
4#3 BIOLOGIA – TERRA DE GIGANTES Em 1874, um naturalista alemão depressivo propôs que
os primeiros animais foram colônias de células chamadas coanócitos, que formaram as
esponjas-do-mar. Mas pesquisas recentes apontam outro caminho para a evolução de seres
grandes como nós – que passa por células-tronco e pinta um panorama mais colorido para a
origem da fauna na Terra. Texto Bruno Vaiano Edição Alexandre Versignassi
ERNST HAECKEL ERA estudante de medicina, filho de um conselheiro da corte
prussiana, e “provavelmente o homem mais bonito que eu já havia visto”, escreveu um de
seus alunos. Ele e sua prima de primeiro grau, Anna, eram apaixonados desde a adolescência
— o que, longe de ser um problema, era o sonho de todo clã aristocrático da Europa no século
19: Darwin, por exemplo, se casou com sua prima, e o irmão dela, com a irmã de Darwin. A
ideia era manter a herança na família e preservar o poder dos sobrenomes.
Haeckel era o partidão perfeito, não fosse um problema: sua semelhança com Darwin
não parava no casamento endogâmico. Ele também queria ser naturalista. O que, no século
19, equivalia a contar para seu tio-do-pavê-e-futuro-sogro que você largaria Medicina da USP
para ser músico. Para convencer a família de que conseguiria sustentar sua prima-noiva, ele
saiu em turnê pelo sul da Europa, estudando animais marinhos nas praias e desenhando-os em
minúcias.
Deu certo. Haeckel escreveu best sellers, virou professor universitário e suas
ilustrações foram uma sensação. Com a grana no bolso, casou-se com Anna. Um ano e meio
depois, aos 29 anos, ela morreu (talvez de febre tifoide, mas não houve diagnóstico). Deprê e
niilista, ele abandonou a fé religiosa e abraçou de vez a evolução por seleção natural. Viciou-se
em trabalho, dormia quatro horas por noite, e começou a traçar imensas árvores da vida na
Terra, que indicavam o grau de parentesco entre as espécies.
Nem todos os insights de Haeckel estavam certos. Mas, dentre suas hipóteses de
arrepiar os cabelos da Igreja, uma, em particular, sobrevive na biologia: nós (e todos os
animais da Terra) somos netos do Bob Esponja.
QUESTÕES POROSAS
As esponjas são tubos de células que se apoiam em rochas, no fundo do mar. A água
entra pelas paredes desses cilindros, que filtram os nutrientes e deixam o resto sair pela
abertura no topo. Elas não têm tecidos ou órgãos especializados, como acontece com nosso
sangue, rins ou pulmões. Todo o corpo se dedica à tarefa de caçar petiscos microscópicos,
passivamente. São os animais mais simples que existem.
Em 1874, Haeckel percebeu que as células filtradoras de comida das esponjas, os
coanócitos, têm exatamente a mesma arquitetura de micróbios aquáticos chamados
coanoflagelados. Eles são criaturinhas microscópicas inofensivas e onipresentes nas águas da
Terra, com um quinto da largura de um fio de cabelo, formadas por uma célula só.
Pertencem ao reino Protista, aquele em que os biólogos põem as coisas que eles não
sabem direito o que são (rs). Um saco de gatos taxonômico. Protistas não são fungos, animais
nem plantas. Mas suas células têm estruturas complexas que esses seres vivos grandões
também apresentam — como um núcleo para guardar o DNA, e usinas de geração de energia
chamadas mitocôndrias. Por isso, animais, plantas, fungos e protistas formam, juntos, o grupo
dos eucariontes, em oposição aos procariontes, que são as bactérias e outros seres mais
despojados, sem núcleo nem mitocôndria.
Existem protistas multicelulares, visíveis a olho nu, como as algas (pois é, elas não são
plantas). Mas muitos, como as amebas e protozoários, são feitos de uma célula só. É o caso
dos coanoflagelados. Vistos no microscópio, eles têm a forma de uma bola em cima de um
cone. Como a silhueta de um buraco de fechadura, ou de um peão de xadrez. A bola é a célula
em si, onde fica o DNA e o resto do maquinário biológico. Já o cone é formado por 30 ou 40
microvilosidades, filamentos que parecem tentáculos de uma água-viva. Do centro desse cone,
emerge um filamento maior, chamado flagelo, parecido com o que equipa os espermatozoides
— e com a mesma função: nadar. O conjunto da obra fica assim: —>O
E de se imaginar que esse rabinho ficasse atrás, empurrando a célula, como ocorre
com o espermatozoide. Mas a verdade é que ele nada ao contrário, com o cone e o rabinho
para frente. Como um avião com hélice no nariz: O<—
O coanoflagelado se move assim porque as microvilosidades atuam como “boca”: vão
captando bactérias e pequenas partículas de material orgânico que pairam na água. (Embora
tenha um centésimo de milímetro, esse serzinho ainda é dez vezes maior que uma bactéria
comum — a mesma diferença entre você e uma coxa de frango.)
A sacada de Haeckel foi que uma esponja do mar funciona como uma colônia de
coanoflagelados, que se uniram em uma muralha para aumentar a área de captação de
comida. A diferença é que eles abanam coletivamente seus flagelos — lembre-se, os
“rabinhos” — para sugar a água para dentro da esponja, e não para se mover. Um é Maomé
indo à montanha, o outro atrai a montanha para Maomé. Os coanócitos das esponjas atuais
seriam herdeiros de coanoflagelados. Protistas em carreira solo que se juntaram para formar o
primeiro animal, o ancestral comum de toda a fauna da Terra.
Vale esclarecer algo: isso não quer dizer que nossos ancestrais sejam os mesmos
coanoflagelados que hoje nadam pelados em Santos. Eles eram, isso sim, um protista pré-
histórico, que existiu há uns 700 milhões de anos, muito parecido tanto com os
coanoflagelados quanto com as células das esponjas — e cuja linhagem se bifurcou para dar
origem a ambos. Do mesmo jeito que nós não descendemos de chimpanzés, e sim de um
primata que não era nem humano, nem chimpanzé. É assim que as árvores darwinianas
funcionam, com ramificações, e não como uma fila do ponto A ao ponto B.
Mais de um século depois, a semelhança anatômica percebida por Haeckel se revelou
uma semelhança genética. Descobrimos que, de fato, os coanoflagelados são os protistas que
têm DNA mais parecido com o dos animais. Nossos parentes de uma célula só já têm genes
que, em nós, foram reaproveitados para produzir proteínas adesivas (que servem para
construir corpos colando” células umas nas outras) e moléculas de sinalização. que permitem
comunicação entre células. Eles já são, em suma, equipados para trabalhar em grupo.
Hoje, as 37,2 trilhões de células do corpo humano se distribuem em mais de 200 tipos,
altamente especializados: neurônios, óvulos, os cones e bastonetes da retina... Sozinhas, cada
uma delas é tão complexa quanto — ou até mais complexa que — qualquer coanoflagelado. E
todas contêm um núcleo com uma cópia completa do material genético. Mas todas topam ser
funcionárias da empresa Corpo. Isso significa ceder os direitos reprodutivos aos gametas e se
relegar à posição de célula somática, que não faz bebês.
Considerando que toda a vida na Terra evoluiu movida pelo instinto de produzir
crianças, esse é um passo organizacional e tanto: uma prova de que crescer confere vantagens
suficientes (como evitar ser comido por predadores) para compensar a perda de
independência reprodutiva. O altruísmo celular se provou uma estratégia viável para
prevalecer na seleção natural.
CARAMBOLAS
A hipótese esponjosa de Haeckel permaneceu incólume, por 140 anos, como nossa
melhor explicação para a origem dos animais. Até que apareceram as carambolas-do-mar —
nome popular dos ctenóforos, bichos aquáticos translúcidos e gelatinosos, que lembram
águas-vivas com forma de bola de rugby. Em 2017, um estudo comparativo de genomas
identificou as carambolas, e não as esponjas, na raiz da irradiação dos animais. E essa
conclusão tem respaldo no registro fóssil: no sul da China, há um fóssil de carambola de 631
milhões de anos na formação geológica de Doushantuo – uma data que corresponde à época
mais aceita para a origem dos seres multicelulares.
Nem uma coisa nem outra são suficientes para tirar o trono pioneiro das esponjas.
Afinal, sempre dá para encontrar um fóssil mais antigo neste exato momento, uma potencial
esponja de 890 milhões de anos está gerando debate entre paleontólogos. O registro
geológico não é uma foto perfeita da realidade, principalmente quando estamos tratando de
animais moles, que geralmente se decompõem sem deixar rastro. Além disso, análises
filogenéticas estão sujeitas a alguma incerteza: métodos e pesquisadores diferentes extraem
conclusões distintas dos mesmos DNAs.
Seja como for, essas duas descobertas reacendem o debate. E afora as carambolas, há
um outro front de pesquisa que desafia as ideias de Haeckel: a investigação de protistas ainda
mais estranhos que os coanoflagelados, que alternam entre estágios de vida uni e
multicelulares. Vide o caso dos mofos do lodo – que não são mofos, e não vivem
necessariamente no lodo.
DA LAMA AO CAOS
O Dictyostelium discoideum, nome do mofo do lodo mais conhecido, começa a vida
como uma ameba microscópica – um protista de célula única. Quando falta comida, essas
amebas se agregam e começam a formar uma lesma visível a olho nu, chamada
pseudoplasmódio, que tem algo entre 2 mm e 4 mm, é composta por mais de 100 mil
indivíduos e age como um organismo só.
A colônia é tão coordenada que uma molécula chamada fator de indução de
diferenciação entra em cena e faz exatamente o que o nome diz: induz as amebas de cada
região da lesma a se diferenciar, assumindo papéis distintos na locomoção. A gosma rasteja
atrás de um local quente e úmido, escolhe um bom ponto e então se transmuta em algo muito
similar a um cogumelo: um pilar que sai do solo e sustenta uma estrutura arredondada na
ponta. Esse é o corpo frutificante, que vai soltar esporos no ambiente, dando origem a amebas
bebês que reiniciam o ciclo.
Um comportamento alienígena semelhante aparece em outro ser ameboide, chamado
Capsaspora owczarzaki. Em um certo estágio da vida, ele pode tanto se agregar em colônias
como se blindar em pequenos cistos individuais. O Capsaspora não faz nada tão legal quanto
os mofos do lodo, mas sua relevância é outra: ele é um parente muito mais próximo dos
animais. Pertence ao grupo Filozoa — que inclui nós e os protistas mais parecidos.
Um casal de biólogos marinhos australianos, Sandie e Bernard Degnan, da
Universidade de Queensland, descobriram em 2019 que o padrão de expressão dos genes do
Capsaspora e de alguns coanoflagelados que formam grupos é muito parecido com o das
células das esponjas. Mas não com o dos coanócitos, que eram os candidatos de Haeckel. E sim
com o dos arqueócitos, um outro tipo de célula que recheia o bicho. Elas são células-tronco,
que podem se transmutar em qualquer outra parte do animal, incluindo os próprios
coanócitos.
Isso leva a um quadro diferente dos primeiros anos de fauna terráquea, em que os
animais não evoluíram a partir de bolas de células idênticas, e sim a partir de células que
conseguiam se metamorfosear para exercer funções diferentes ao longo de seus ciclos de vida.
Os primeiros animais seriam colônias mutantes, formadas por células-tronco que assumiam
personas biológicas conforme a necessidade. Com a evolução de bichos mais complexos, esses
coringas foram empacando em formas especializadas e perdendo a versatilidade – o processo
que deu origem aos órgãos e tecidos que nos formam hoje.
Isso não diz nada sobre esponjas ou carambolas serem os primeiros animais, mas
mostra o quão estranhas as primeiras esponjas e carambolas podem ter sido em comparação a
seus descendentes atuais. Imagina-se que os oceanos do Ediacarano — o primeiro período
geológico com fósseis de animais, que começa há 630 milhões de anos — eram um berçário
pacato de vida multicelular, sem presas e predadores. Havia apenas seres boiando e filtrando
nutrientes. No nível microscópico, porém, eles talvez fossem mais sofisticados do que damos
crédito. Ninhos de células versáteis como David Bowie, que eram Ziggy Stardust em um dia e
Alladin Sane no dia seguinte. Ch-ch-chch-changes.
GIGANTES DE LABORATORIO Existe um ramo das pesquisas sobre multicelularidade em que os
biólogos submetem células solitárias a pressões seletivas, em laboratório, para fazer com que
elas se juntem. Entenda um desses estudos, realizado no Instituto de Tecnologia da Geórgia,
nos EUA. 1- O experimento começou com leveduras, os fungos de uma célula só que
fermentam pão e cerveja. Eles foram postos em tubos de ensaio. Os mais pesados, que
afundavam mais rápido, eram selecionados e passados para um novo tubo. Os biólogos
repetiram o processo 60 vezes. 2- A ideia é que as leveduras pesadas tendem a ser blocos com
mais de uma célula, como dois pães de queijo que saem grudados do forno. Esses “siameses”
nascem quando uma levedura tenta se reproduzir se dividindo ao meio e não consegue
completar o processo por causa de uma mutação no gene ACE2. 3- Sessenta filtragens depois,
já havia grupos razoavelmente grandes de células coladas. Mas eles ainda eram microscópicos.
Para aumentá-los, os cientistas mexeram no DNA do fungo para que ele não conseguisse mais
respirar oxigênio e gerasse energia por fermentação, um processo menos eficiente. 4-
Resultado: os grupos de leveduras fermentadoras cresceram tanto que ficaram visíveis a olho
nu. Já os que respiram oxigênio precisam permanecer pequenos, porque o gás não chega até o
meio da colônia se ela é grande demais. É por problemas assim que nós evoluímos um sistema
circulatório, que distribui o gás usando o sangue.
Fonte: artigo “Oe novo evolution of macroscopic multicellularity”, por G. Ozan Bozdag e
outros.
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