A história que está sendo escrita agora no presente, vamos lembrar no futuro.
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O INSTITUTO
O IFFD visa subsidiar o debate político e econômico com base nas atualizações e inovações no campo da macroeconomia, aglutinando profissionais para analisar, estudar e formular políticas e parâmetros orçamentários, pesquisar e avaliar impactos macroeconômicos, produzir estudos, relatórios, notas técnicas, realizar cursos, palestras, seminários e atuar pelas Finanças Funcionais, de forma a oferecer aos mais diversos agentes políticos o suporte teórico e técnico necessário à gestão funcional das finanças públicas.
A Necessidade de Expansão Planejada dos Gastos Públicos
O Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD), uma coletividade de economistas, acadêmicos e especialistas em economia e orçamento público, expressa apoio às recentes declarações da Presidenta do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffmann, sobre a necessidade de expansão planejada dos gastos públicos no Brasil. A proposta da Presidenta do PT é coerente com nossa perspectiva de que a imposição de regras fiscais nos últimos 40 anos tem se mostrado ineficaz e contraproducente como instrumento de promoção da prosperidade econômica, da justiça social e do fortalecimento da democracia no país.
Gleisi Hoffmann defendeu a priorização dos investimentos em obras e serviços públicos fundamentais, visando o bem-estar e a prosperidade, especialmente das populações mais vulneráveis. Subscrevemos essa posição, afirmando que a gestão orçamentária deve ser uma ferramenta para alcançar metas econômicas como o pleno emprego, a estabilidade de preços e o desenvolvimento social justo e ambientalmente sustentável.
Ressaltamos que regimes fiscais rígidos e que estabelecem limite máximo para o crescimento dos gastos, como o Teto de Gastos e o Novo Arcabouço Fiscal (NAF), são equivocados, porque impedem a necessária expansão de gastos quando há desemprego e baixa ocupação da capacidade instalada. Além disso, são absolutamente ineficazes para os propósitos a que se destinam, dado que a contenção dos gastos públicos afeta negativamente a atividade econômica e a arrecadação, levando a déficits sucessivamente maiores. Por fim, desorganizam todo o processo de planejamento e execução do orçamento, tornando a ação do governo menos eficiente na lida com eventos emergenciais e mais suscetível a procedimentos não transparentes de distribuição de recursos orçamentários. A inadequação de regras fiscais meramente contábeis, apartadas das necessidades concretas do país, para a gestão da política fiscal tem sido amplamente reconhecida até por órgãos que costumavam recomendá-las, como o FMI.
Sociedades complexas necessitam planejar o uso de seus recursos para enfrentar os enormes desafios econômicos, sociais e ambientais pelos quais passamos. Governos não são famílias, que administram orçamentos rígidos. Governos criam moeda ao gastar e, para atender às necessidades da sociedade, precisam planejar seus gastos de acordo com os recursos humanos e materiais disponíveis. Regras fiscais equivocadas revertem o processo democrático porque balizam a ação do governo não pelas necessidades sociais a serem satisfeitas, mas por metas contábeis. Isso tem se mostrado economicamente contraproducente, por não permitir o pleno uso dos recursos humanos e materiais disponíveis, e politicamente perigoso, por frustrar as aspirações mais fundamentais do povo brasileiro.
A capacidade financeira do governo brasileiro foi demonstrada durante a pandemia. Em 2020, para atender às emergências sanitárias, o governo foi capaz de incorrer em mais de R$700bi de déficit com inflação dentro da meta e os juros reais mais baixos dos últimos 50 anos. Diante da catástrofe sanitária, o governo foi capaz de prover auxílio emergencial para quase 70 milhões de brasileiros/as, além de ter complementado os salários de milhões de trabalhadores/as e transferido cerca de R$90 bilhões para estados e municípios enfrentarem a pandemia. Para isso, foi necessário suspender as regras fiscais para atender à emergência sanitária, numa flagrante demonstração de sua inadequação diante das necessidades sociais mais básicas, como a garantia da saúde, da renda e do emprego.
Estamos diante de necessidades que vão requerer mobilização de recursos em magnitude superior àquela que foi feita durante a pandemia: a transição energética e produtiva para uma economia que funcione e, ao mesmo tempo, reverta a degradação ambiental, não será alcançada por mudanças marginais de preços relativos e apelos à consciência ecológica empresarial; a igualdade e a justiça social requererão muito mais do que programas de transferência de renda e assim por diante. Aprendemos com o enfrentamento da pandemia que não é recomendável voltar às regras fiscais que se mostraram ineficazes, mas sim usar do poder financeiro do governo para executar um plano de provisão de políticas públicas democraticamente discutido, e que atenda às aspirações populares. Criar obstáculos para a sociedade democraticamente decidir o que pretende fazer com o poder financeiro do governo é o caminho para desmoralizar a política. Regras fiscais equivocadas podem deslegitimar governos democráticos junto à população, mas jamais serão suficientes para impedir governos antidemocráticos de atingirem seus objetivos.
O IFFD tem contribuído com análises e propostas que visam à construção de um Brasil mais equitativo, socialmente inclusivo e ambientalmente responsável. Defendemos que a posição defendida pela Presidenta do PT, Deputada Gleisi Hoffmann, é a mais adequada para conduzir o país a um futuro onde progresso social, justiça econômica e proteção ambiental estejam alinhados, fortalecendo a democracia.
Atenciosamente,
Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD).
Brasil, 11 de dezembro de 2023.
https://www.ihu.unisinos.br/640820 https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/640969-eleicao-de-lula-foi-acerto-historico-mas-ele-foi-eleito-para-que-a-luta-de-classes-prosseguisse-parte-ii-entrevista-especial-com-david-deccache A financeirização dos serviços públicos no Brasil está atrelada à lógica de acumulação cada vez mais agressiva do capitalismo em crise – Parte I. Entrevista especial com David Deccache Para o economista e pesquisador, apesar das falas de Lula contra Campos Neto, não há divergências entre o projeto macroeconômico do Executivo e projeto monetário do Banco Central Por: IHU e Baleia Comunicação | 03 Julho 2024 Expressões como “teto de gastos”, “austeridade fiscal” e, o mais recente, “arcabouço fiscal” há anos passaram a fazer parte do repertório de milhões de brasileiros. Em que pese os temas sejam discutidos política e ideologicamente, há pouca compreensão sobre o que na verdade esses termos significam e quais são suas diferenças entre si. Na prática, apesar de suas nuanças, todas elas se referem a eufemismos que, no fundo, resultam na redução de direitos sociais. Com relação ao arcabouço fiscal, projeto encaminhado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, três setores essenciais são diretamente afetados: Saúde, Educação e Seguridade Social. “A primeira consequência é uma forte limitação orçamentária para o Estado manter e ampliar os serviços públicos, então há uma tendência de deterioração desses serviços”, explica David Deccache em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “Intencionalmente foi criada uma lógica fiscal para impor uma deterioração de recursos para essas três áreas”, complementa. No fundo, o que está em jogo é uma radicalização da financeirização da política. “É importante analisar (…) que o aspecto de financeirização está imposto: primeiro, a austeridade fiscal destrói o público, depois há o incentivo para a privatização desse serviço via parceria público-privada, que é a forma predominante em que se privatizam serviços públicos”, alerta Deccache. “Há uma lógica de desestatização e financeirização dos serviços públicos no Brasil que está atrelada a uma lógica de acumulação cada vez mais agressiva de um capitalismo em crise, de um neoliberalismo em sua crise cada vez mais profunda. Não é algo desse governo em específico, mas é a continuidade de um processo cada vez mais espoliativo e mais agressivo de um capitalismo que tenta se reconstruir das próprias crises que ele gera”, explica o entrevistado. Apesar das semelhanças, do ponto de vista fiscal, do governo Lula III com seus antecessores, Temer e Bolsonaro, há diferenças e avanços importantes na atual gestão. “Nós saímos de uma política de transferência direta de renda de R$ 170,00 por família para mais de R$ 600,00 por família; saímos de algo que equivalia a 0,5% do PIB para algo em torno de 1,5% do PIB. Também houve a aprovação do Piso da Enfermagem e a elevação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb, o que elevou o patamar de gastos”, sopesa o economista. Em breve publicaremos a segunda parte da entrevista com David Deccache. David Deccache é doutor (UnB) e mestre (UFF) em Economia e assessor técnico na Câmara dos Deputados. É coautor do livro Teoria Monetária Moderna: a chave para uma economia a serviço das pessoas (Genérico: 2020). Confira a entrevista. IHU – Pode traçar um panorama da política econômica do atual governo Lula? Como ela funciona e a que está orientada? David Deccache – A política econômica do governo Lula está centrada na estrutura do novo arcabouço fiscal, que organiza toda a política econômica do governo. Este arcabouço começou a funcionar em 2024. Em 2023, ainda não estávamos dentro do novo regime fiscal. Logo, as consequências estruturais desse projeto econômico, inclusive desejadas quando o arcabouço foi construído e aprovado, passarão a ser percebidas no decorrer deste ano e nos próximos. A primeira consequência é uma forte limitação orçamentária para o Estado manter e ampliar os serviços públicos, então há uma tendência de deterioração desses serviços. Uma segunda questão importante, agora sendo mais específico, é em relação a áreas fundamentais para gastos sociais: Saúde, Educação, Previdência Social e Seguridade Social. O novo arcabouço fiscal, em sua construção, visava instruir os pisos constitucionais para essas áreas. Isso é uma conclusão necessariamente matemática: quando o novo arcabouço fiscal é construído, cria-se uma incompatibilidade entre o novo teto de gastos que ele impõe e os pisos, seja o piso da saúde, que equivale a 15% das receitas correntes líquidas, seja o piso da educação – 18% das receitas impostas –, seja o atrelamento do salário mínimo aos benefícios previdenciários e ao Benefício de Prestação Continuada – BPC como piso. Isso é uma conclusão matemática porque a taxa de crescimento do teto de gastos é muito inferior à taxa de crescimento desses pisos, logo há uma incompatibilidade matemática entre essas taxas e, em algum momento, o orçamento não será mais possível ser administrado, porque esses pisos ocupariam praticamente todo o orçamento e não haveria mais despesas para as outras áreas. Intencionalmente foi criada uma lógica fiscal para impor uma deterioração de recursos para essas três áreas. A desindexação é um pilar que vemos muito claramente no projeto econômico estabelecido pela “Ponte para Futuro” do MDB, em 2015. Por outro lado, além dessa deterioração, o que é um pilar do projeto neoliberal, que também está manifesta no documento Ponte para o Futuro, é a mercantilização e a financeirização dos serviços públicos. O governo Lula também avança nesse ponto. A primeira consequência [do novo arcabouço] é uma forte limitação orçamentária para o Estado manter e ampliar os serviços públicos, então há uma tendência de deterioração desses serviços – David Deccache Parcerias público-privadas Não basta só deteriorar, ou seja, reduzir o Estado no seu papel de prestador de serviços sociais; eles necessitam dar muito poder de um Estado muito grande para desestatizar e avançar na financeirização. Isso é realizado através da centralidade do Programa de Parceria de Investimentos – PPI, criado na época do governo Michel Temer, que visava estruturar e estimular junto aos governos estaduais e municipais parcerias públicos-privadas de todos os tipos. Aliás, o governo Lula cria uma série de isenções tributárias, alguns que não existiam nem no governo Temer e nem no Bolsonaro, para estimular e facilitar a privatização da Educação, da Saúde, de presídios socioeducativos, meio ambiente, do saneamento básico dos estados e municípios no âmbito do PPI. Isso ocorre via instrumentos como as Debêntures Incentivadas e as Debêntures de Infraestrutura, em que as empresas que desestatizem essas áreas fundamentais – saúde, educação, meio ambiente, saneamento, sistema prisional – conseguem se financiar com mais facilidade. Por exemplo, no caso Debêntures Incentivadas, elas conseguem emitir debêntures e obter recursos no mercado e quando elas vão pagar a remuneração para o financiador que entrou com ela como parceiro nessa privatização, essa renda é isenta de imposto de renda. Ou seja, quem financia essas empresas, quando recebe a renda gerada pelo financiamento, é considerado pelo governo federal, por ser da mais alta relevância social, com isento de pagar imposto de renda. É a mesma lógica dos juros e dividendos no Brasil. Isto cria uma lógica em que há uma enorme facilidade para o avanço das parcerias público-privadas – PPPs. Por outro lado, foram criadas as Debêntures de Infraestrutura. Eu poderia citar vários exemplos. Quando a empresa emite a debênture, ela precisará pagar juro ao financiador. Esse juro pago pode ter parte significativa do imposto de renda. Portanto, o Estado paga uma parte que a empresa deveria pagar para o financiador renunciando ao imposto de renda da empresa também. São vários mecanismos de incentivos tributários para tornar as PPPs interessantes num contexto em que os serviços públicos estão sendo destruídos. Então o Estado tira o serviço público e dá para a iniciativa privada privatizar. Financeirização Além disso, é importante analisar – poucos estão percebendo –, que o aspecto de financeirização está imposto: primeiro, a austeridade fiscal destrói o público, depois há o incentivo para a privatização desse serviço via parceria público-privada, que é a forma predominante em que se privatizam serviços públicos. Tem austeridade, privatização e depois o governo permite que papéis no mercado financeiro circulem atrelados a essa desestatização. Então há uma predominância da especulação financeira no que antes era público. Um exemplo disso são as privatizações dos presídios. Quando elas ocorrem, as empresas vão emitir papéis, a rentabilidade desses papéis está atrelada ao sucesso da lógica financeira desse processo de privatização dos presídios, que depende do aumento da população carcerária para fazer mais sucesso e, a valorização desses papéis, por consequência, também. Portanto, cria-se uma coalizão de interesses entre privatização e mercado financeiro, que por consequência cria um vínculo com setores poderosos que vão fortalecer o punitivismo, porque a mercantilização do encarceramento em massa dos jovens negros virou lucro e especulação: quanto mais eficiente o Estado empreender, mais lucros serão gerados. O aspecto de financeirização está imposto: primeiro, a austeridade fiscal destrói o público, depois há o incentivo para a privatização desse serviço via parceria público-privada – David Deccache Há uma lógica de austeridade fiscal imposta pelo arcabouço fiscal, e o Estado criando mercados pela secretaria do PPI. Mais um detalhe dessa secretaria: o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES é o banco que estrutura os editais e financia diretamente as parcerias públicos-privadas ou busca financiamento para essas parcerias. O BNDES é central para o processo de desestatização. Isso vem acontecendo desde o governo Temer, mas é no governo Lula que ganha mais ênfase o que eles chamam de infraestrutura social – saúde, educação e sistema prisional. Tanto é que o decreto inserindo essas áreas nas Debêntures Incentivadas e nas novas Debêntures de Infraestrutura é de 2023. Nem nos governos Temer e Bolsonaro essas áreas tinham direito a esses benefícios; eram áreas mais de infraestruturas de fato, como portos e aeroportos. Capitalismo espoliativo Por fim, ainda nesse modelo, há as Garantias Soberanas do Tesouro, porque o capitalismo espoliativo não gosta de riscos. Por exemplo, o Eduardo Leite privatizou recentemente um presídio em Erechim. Há uma crise fiscal no Rio Grande do Sul mesmo antes da tragédia. O BNDES deu apoio para a construção do edital e para a obtenção do financiamento. As empresas podem captar recursos no mercado via debêntures para facilitar a obtenção de crédito ou junto a este banco. Mesmo assim, elas correm o risco de o governo gaúcho não ter condições de pagá-las em determinado mês pelo encarceramento, o que gera um risco e desincentiva as empresas a entrar nos negócios e nesse jogo de desestatização. No caso de não pagamento do governo estadual, o governo federal faz o pagamento por meio das Garantias Soberanas do Tesouro e o estado fica com dívida com o governo federal, eliminando o risco da operação. Veja: é um Estado muito forte e robusto para desestatizar e um Estado cada vez menor para a prestação de serviços públicos. Há uma lógica de desestatização e financeirização dos serviços públicos no Brasil que está atrelada a uma lógica de acumulação cada vez mais agressiva de um capitalismo em crise, de um neoliberalismo em sua crise cada vez mais profunda. Não é algo desse governo em específico, mas é a continuidade de um processo cada vez mais espoliativo e mais agressivo de um capitalismo que tenta se reconstruir das próprias crises que ele gera. A lógica de desestatização e financeirização não é algo desse governo em específico, mas é a continuidade de um processo cada vez mais espoliativo e mais agressivo de um capitalismo que tenta se reconstruir das próprias crises que ele gera – David Deccache IHU – No frigir dos ovos, que diferenças há entre o teto de gastos, aprovado pelo governo Temer, e o arcabouço fiscal de Haddad? David Deccache – Há diferenças, mas os fundamentos são os mesmos. O governo Lula tentou manter o teto do Temer até 2026 na PEC da Transição e o congelamento dos pisos da Saúde e da Educação – isso é importante não ser apagado da história econômica brasileira. Durante o governo de transição, inclusive a burguesia já sabia, que o teto do Temer havia se tornado inviável. Porque as políticas de transferência direta de renda, naquela época o Auxílio Emergencial, tinham mudado de patamar por conta da pandemia e da tentativa de estelionato eleitoral do Bolsonaro, que ampliou o auxílio para logo depois reduzir, caso fosse eleito. Nós saímos de uma política de transferência direta de renda de R$ 170,00 por família para mais de R$ 600,00 por família; saímos de algo que equivalia a 0,5% do PIB para algo em torno de 1,5% do PIB. Também houve a aprovação do Piso da Enfermagem e a elevação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb, o que elevou o patamar de gastos. Essas despesas não eram mais comportadas pelo velho teto de gastos, isso tudo decorrente da pandemia e de algumas aprovações que tivemos de algumas matérias durante esse tempo por pressão popular. Então o teto de gastos não poderia voltar – isso era um dado. Nós saímos de uma política de transferência direta de renda de R$ 170 por família para mais de R$ 600 por família, saímos de algo que equivalia a 0,5% do PIB para algo em torno de 1,5% do PIB – David Deccache Governo de transição A opção do governo de transição naquele momento foi manter o teto de gastos do Temer e os pisos da saúde e da educação congelados, porém com a retirada da política de transferência direta de renda desse teto, no caso o novo Bolsa Família. Eles pediram um espaço em torno de R$ 170 bilhões para essa política, que ficaria fora dessa lógica de austeridade fiscal. Portanto, há austeridade fiscal para o conjunto de despesas, porém sem ter austeridade fiscal direita para a transferência direta de renda. Isto é um neoliberalismo explícito. Políticas fortes de transferência de renda focalizadas e a austeridade fiscal para todo o resto em nada entram em contradição com o que o Milton Friedman defendia. Essa minuta de PEC, que foi formalmente apresentada e é pública, foi rejeitada e encenada. foi construído algo “melhor” no Congresso. À época, eu e alguns colegas economistas escrevemos uma crítica dura a essa tentativa do governo porque, em nossa opinião, eles estavam perdendo uma janela de oportunidades: avançar na revogação do teto e na retomada dos pisos constitucionais e na construção de uma nova lógica fiscal, que desse protagonismo ao Estado no seu papel de provedor dos serviços públicos e de motor dos investimentos na economia. Essa opção não foi a do governo, mas no Senado houve um debate onde chegaram à conclusão de que o teto de gastos deveria ser derrubado. O que é neoliberalismo explícito. Políticas fortes de transferência de renda focalizadas e austeridade fiscal para todo o resto em nada entra em contradição com o que o Milton Friedman defendia – David Deccache Disputa política No Senado eles permitem o “furo” que o governo queria para 2023 e também nesse ano o governo federal deveria enviar um Projeto de Lei Complementar – PLC para o Congresso com uma nova regra fiscal. Esse PLC, ao ser aprovado, revogaria o antigo teto de gastos e retomaria os pisos da Saúde e da Educação. Mais do que isso: o Senado coloca esse projeto de iniciativa exclusiva do Poder Executivo, ou seja, ninguém mais poderia construir essa lei, não deixando brechas para o Congresso construir algo e votar. Nesse ponto vemos quais são as limitações dadas pela correlação de forças no Congresso Nacional e pelo projeto estrutural que o governo federal se comprometeu em realizar a gestão. Claro que isso não foi um surto de altruísmo do Senado, essa mudança de lógica fiscal. Em minha opinião, isso decorre de uma disputa entre alguns políticos do Senado e a Câmara dos Deputados. Por exemplo, Renan Calheiros disputa Alagoas com o Arthur Lira e ele percebe, claramente, que a lógica do teto de gastos antigo favorecia demasiadamente o Lira. Porque precisava ser furado com frequência via Proposta de Emenda Constitucional – PEC, que exige um quórum muito elevado e dava muito poder ao Lira frente aos governos, o que gerava emenda de orçamento secreto dentro da Câmara, logo ampliava o poder do Lira e facilitava a disputa dele contra o Renan em Alagoas. Dentro dessa lógica política, que não tem a ver com o bem-estar social, havia essa janela de oportunidades. O governo ganhou a possibilidade de criar uma lógica de política fiscal em que a austeridade fiscal e a financeirização não fossem predominantes e não comandassem toda a lógica de gestão do orçamento público. Mas não, o que o governo fez foi enviar um novo teto de gastos – o novo Arcabouço Fiscal. O governo ganhou a possibilidade de criar uma lógica de política fiscal em que a austeridade fiscal e a financeirização não fossem predominantes, mas não, o que o governo fez foi enviar um novo teto de gastos – o novo Arcabouço Fiscal – David Deccache A inviabilidade dos pisos constitucionais A lógica do arcabouço é a mesma do antigo teto: inviabilizar a manutenção dos pisos constitucionais, da Previdência e do BPC. Quando o Temer fez o teto de gastos dele, ele sabia que para manter o teto precisava quebrar os pisos da Saúde e da Educação – na verdade ele suspendeu – e para isso precisava de uma Lei Complementar, que é onde se criam e se estabelecem regras fiscais no Brasil, e depois criar uma PEC alterando os pisos. Havia outra possibilidade: ele fazer uma PEC já mexendo nos pisos e criando as regras. O ministro Haddad precisou lidar com a mesma contradição do Temer, já que o objetivo dele era exatamente o mesmo: quebrar pisos, desindexar o orçamento. É uma pauta da escola de economia do Instituto de Ensino e Pesquisa – Insper, de onde o Haddad vem. A opção do Haddad foi fazer em duas etapas, primeiro enviando um PLC estabelecendo o novo teto de gastos e, depois, uma série de medidas de emenda constitucional quebrando os pisos e desindexando o orçamento da Previdência Social. A lógica estrutural é a mesma. A diferença é que no novo teto de gastos pode haver o crescimento de até 2,5%, em termos reais, acima da inflação e o no teto do Temer não havia esse crescimento. Mesmo esse argumento é frágil porque o teto do Temer era frequentemente furado. Quando observamos os dados reais, o crescimento das despesas primárias era acima até de 2,5% em vários anos, mesmo antes da pandemia. No primeiro ano do governo Bolsonaro, teve um crescimento 2,7% acima da inflação. Então esse 2,5%, que é o máximo, que é o melhor dos mundos, está duas ou três vezes abaixo do que os governos Lula I e II faziam em termos de taxa de crescimento de gastos, que é o que dá a direção do tamanho dos gastos sociais de investimentos públicos. Está em linha com o que se observava na prática nos governos anteriores de Temer e Bolsonaro: não há uma mudança na trajetória de crescimento desses gastos. A lógica do arcabouço é a mesma do antigo teto: inviabilizar a manutenção dos pisos constitucionais, da Previdência e do BPC – David Deccache Redução dos gastos primários Necessariamente, nessa lógica do arcabouço fiscal, quando olhamos para as projeções, inclusive oficiais do governo, há uma redução dos gastos primários do Estado. Retirando os gastos financeiros com dívida pública e afins, em relação ao PIB, tendemos a ter um Estado cada vez menor em relação à economia. Ou seja, a relação entre os gastos primários e o PIB piora ao longo do tempo, vai caindo. Há um Estado cada vez menor em relação a uma população que cresce. Isto necessariamente implica na mercantilização dos serviços públicos, há cada vez menos dinheiro em relação a uma população que cresce, e um espaço cada vez maior para o setor privado atuar. É uma lógica de espoliação dos serviços públicos. Quando o novo arcabouço fiscal foi apresentado, havia uma mentira matemática. Havia duas formas de tornar o arcabouço sustentável: uma era tributando os mais ricos e muitos economistas progressistas alegavam que o arcabouço fiscal induzia à tributação dos mais ricos. A outra seria pelo corte de gastos sociais e de investimentos públicos. Esse debate [real] nunca foi colocado, mas foi “colocado” para legitimar os cortes de gastos sociais após falarem que não conseguiram aumentar a tributação sobre os mais ricos no Congresso. No entanto, essa é uma narrativa mentirosa porque o novo arcabouço fiscal independe do crescimento de receitas para funcionar – esse é um dado matemático. Ele não depende de receitas para ser sustentável, mas depende necessariamente de quebras dos pisos da Saúde e da Educação, da Previdência e da Seguridade Social para se tornar sustentável. Mas é uma lógica de ajuste fiscal exclusivamente em cima de gastos sociais e todo o resto é teatro. Há um Estado cada vez menor em relação a uma população que cresce. O que necessariamente implica na mercantilização dos serviços públicos – David Deccache Dois tetos Há dois tetos principais no novo arcabouço fiscal. Primeiro, há um teto que fala que as despesas do próximo ano só podem crescer a uma taxa de 70% do que as receitam cresceram. Porém a Saúde e a Educação crescem numa taxa próxima de 100% do que as receitas cresceram. É como se esse primeiro teto fosse um grande caminhão correndo a 70 km por hora e fechando uma estrada, atrás nós temos o carro da Saúde, da Educação, da Previdência e do BPC, ambos a 100 km por hora. Em determinado momento esses carros vão bater no caminhão; enquanto eles não batem, vão atropelando as despesas que não têm proteção constitucional, que não são despesas obrigatórias. Ou seja, há uma crise orçamentária dada, que independe do crescimento das receitas. A incompatibilidade pelo lado dos gastos é mantida independentemente do crescimento das receitas. A insustentabilidade fiscal no Brasil é do lado dos gastos e é autoimposta pelo novo arcabouço fiscal. Esse é outro elemento que fugiu do debate público por conta de um teatro. Há um segundo teto ainda. Porque se as receitas crescem 10% no primeiro teto, os gastos podem crescer 7%. Porém, para isso não acontecer, porque mesmo assim achavam que iriam crescer muito os gastos, eles colocaram no teto de 2,5%. Isto é, mesmo se o Lira virar “socialista” e aumentar muito as receitas, os gastos ficam limitados a 2,5%. É pior do que o meu primeiro exemplo. Quando levamos em consideração o segundo teto, é um caminhão andando a 25 km por hora e os outros carros andando a 100 km por hora. E, se dobrar as receitas, carros vão andar a 200 km por hora, mas o teto que é o grande caminhão vai continuar a 25 km por hora, que é o limite máximo dele. Portanto, aumentará uma crise orçamentária. Quebra do piso da saúde Na prática isso se revela em 2023: todas as vezes que as receitas aumentam a mais do que o estimado, Saúde e Educação têm que aumentar a receita corrente líquida. No entanto, isso aumentando e o teto parado, tem que fazer contingenciamento em outras áreas para repassar os valores para a Saúde e a Educação. Isso levou, por exemplo, o governo a buscar junto ao Tribunal de Contas da União – TCU a quebra dos pisos da Saúde em 2023, com a argumentação muito questionável de que os pisos só voltariam em 2024, sendo que, em minha avaliação e de vários juristas, os pisos deveriam voltar imediatamente após a aprovação do novo arcabouço fiscal. Assim, eles tiram alguns bilhões da Saúde em 2023 porque as receitas cresceram e não porque as receitas caíram. É importante colocar isso, porque há muitos que dizem que há a possibilidade de tornar o arcabouço fiscal sustentável, revendo, por exemplo, as desonerações fiscais, como o presidente Lula fala. Isso é impossível. É óbvio que temos que rever as desonerações fiscais, mas isso nada muda a incompatibilidade matemática dos pisos com o teto. Essa é uma conclusão que todos os economistas sérios já tiraram, inclusive os do mercado financeiro e os da esquerda que têm compromisso com a verdade. É teatro. Taxa de juros Outro teatro é a taxa de juros. Se a taxa de juros reduzir, é possível diminuir os gastos financeiros, e os gastos públicos sociais poderiam ser aumentados. Isso é terraplanismo porque em nada muda o congelamento de gastos sociais se diminuir a taxa de juros mas o arcabouço fiscal é blindado a todas essas possibilidades progressistas, ele só funciona, portanto, com ataque aos gastos sociais. O novo arcabouço fiscal impõe uma lógica neoliberal espoliativa em que os serviços públicos se tornam insustentáveis e subordinados à lógica de austeridade fiscal e de mercantilização e financeirização. IHU – Em que sentido o discurso da “austeridade” é uma armadilha que acaba afetando negativamente os mais empobrecidos? David Deccache – O discurso de austeridade fiscal é o senso comum que as classes dominantes tentam estabelecer para alcançar um consenso e uma aceitabilidade social para avançar com ataques contra a classe trabalhadora. Esse discurso tem forte aderência na classe trabalhadora porque ele diz que, tal qual uma família ou tal qual uma padaria, não se deve gastar mais do que se arrecada. Não se administra um Estado como se fosse uma padaria Então eles colocam a austeridade fiscal e a destruição dos gastos públicos como responsabilidades fiscais, sendo que, para o governo gastar na própria moeda que ele emite, as restrições são completamente diferentes das restrições de uma família ou de uma padaria, que são usuários da moeda emitida. É totalmente diferente pensar no emissor soberano e monopolista de uma moeda e pensar nos usuários dessa moeda. Quem emite a própria moeda na qual emite seus gastos não possui restrições fiscais tal qual uma família ou empresa. Porque há déficits fiscais, inclusive muito profundos, tal qual foi na pandemia, sem ir à falência porque a dívida pública está atrelada à moeda que só você pode emitir. O que significa que um Estado monetariamente soberano não quebra na própria moeda que emite. Essa conclusão, por exemplo, é exposta em entrevista recente pelo economista André Lara Rezende, que foi o formulador do Plano Real. É totalmente diferente pensar no emissor soberano e monopolista de uma moeda e dos usuários dessa moeda. Quem emite a própria moeda na qual emite seus gastos, não possui restrições fiscais tal qual uma família ou empresa – David Deccache Um governo, usando o economista burguês que é John Maynard Keynes, deve estipular sua política fiscal entre déficits e superávits, de modo a equilibrar a economia próximo ao pleno emprego das suas forças produtivas, para não haver excesso de gastos para além das possibilidades técnicas e materiais do que geraria inflação, mas também para não haver gastos em que os recursos produtivos ficassem ociosos, o que implica em desperdício da capacidade material de fazer coisas socialmente úteis. A austeridade fiscal vem para atuar e blindar essas possibilidades e se estabelece neste senso comum de que o Estado deve se comportar tal qual a dona Lindu ensinou ao presidente Lula: não gastar mais do que arrecada. Só que a dona Lindu não emite seus gastos na própria moeda, não determina sua própria taxa de juros à qual sua dívida está atrelada. São situações totalmente distintas e não há nenhuma comparação entre a macroeconomia e as finanças domésticas, como os economistas tentam fazer para convencer a classe trabalhadora a defender políticas que vão contra os próprios interesses da classe trabalhadora. A austeridade fiscal age buscando criar consensos por meio dos seus aparelhos ideológicos, Estado e imprensa, o que é totalmente contraproducente para os trabalhadores. Quando há aceitabilidade social a estas políticas, perdem-se direitos, aumenta-se a exploração. Portanto, a austeridade fiscal busca uma aceitabilidade social para cumprir com seus objetivos. O que significa que um Estado monetariamente soberano não quebra na própria moeda que emite – David Deccache Falácias à classe trabalhadora Primeiro, tirar uma taxa de desemprego disciplinadora para a classe trabalhadora, porque o desemprego no capitalismo exerce um efeito disciplinador. Ou seja, as pessoas ficam receosas de perder o emprego e, portanto, aceitam todo e qualquer tipo de violação de direitos, o esmagamento de salários, elas têm mais dificuldade de se organizarem socialmente porque sabem que têm uma fila de outros trabalhadores, que se forem mandadas embora, vão querer a vaga delas. Essa é a contradição do capitalismo em tempos de neoliberalismo. A pessoa tem que vender sua força de trabalho para ser megaexplorada e ter sua vida destruída para poder sobreviver, ou ficará desempregada e não poderá sobreviver. A austeridade fiscal cumpre esse papel de manter um exército industrial de reserva que desequilibra a correlação de forças no caso entre capital e trabalho para o lado do capital. O segundo efeito desta política de austeridade fiscal é o efeito de impedir que o Estado seja provedor de bens e serviços públicos para que o setor privado atue nessa provisão de bens e serviços públicos. Para atacar esferas de acumulação que estão sob o controle da sociedade, de uso comum, e expandir esferas de acumulação para o setor privado, inclusive atrelando isso à financeirização. Por isso que eu falei lá no começo da entrevista que o novo arcabouço fiscal é um pilar dessa lógica neoliberal, porque faz com que seja autoimposta. É óbvio que tudo isso gera grande resistência da classe trabalhadora. No entanto, com os aparelhos ideológicos funcionando na lógica de que isso é necessário para equilibrar as contas, de que todos esses retrocessos são fundamentais para equilibrar as contas em prol da responsabilidade social, acaba que uma parcela da militância e da classe trabalhadora começa a agir contra seus próprios interesses. Todas essas falácias precisam ser denunciadas. Não há nenhuma comparação entre a macroeconomia e as finanças domésticas, como os economistas tentam fazer para convencer a classe trabalhadora a defender políticas que vão contra os próprios interesses da classe trabalhadora – David Deccache IHU – Na sua avaliação, até que ponto a equipe econômica do governo federal – principalmente Haddad e Tebet – está alinhada ao Banco Central, especialmente Campos Neto? Em que convergem e no que divergem as políticas fiscais (governo) e monetárias (BC)? David Deccache – Há um alinhamento total nos fundamentos teóricos. Isso não é uma hipótese, mas um fato, porque eles partem do mesmo arcabouço teórico, que é a nova síntese neoclássica. Em termos muito simples: a política fiscal deve ser muito dura e neutra. Então faz-se uma política fiscal que fica na mão do Haddad e da Tebet, para que a partir disso o Campos Neto possa reduzir as taxas de juros. Essa é a lógica da estrutura econômica que “harmoniza” as políticas fiscal e monetária no novo consenso macroeconômico ou na nova síntese neoclássica. Contração fiscal Uma versão mais radicalizada disso é a hipótese da contração fiscal expansionista do Joaquim Levy em 2015, que o Haddad repete nas suas falas sem citar que teoria está usando. Ele diz que vai reduzir investimentos públicos e gastos sociais, o que teria um efeito contracionista. Mas esse efeito contracionista não vai se manifestar, pois quando fizer isso vai ganhar confiança do mercado e do Banco Central, que vai reduzir taxa de juros. Então, quando a redução da taxa de juros ocorrer, haverá um aumento dos investimentos privados que vai mais do que compensar a queda dos investimentos públicos. O efeito líquido desta contração fiscal será expansionista. O pai da sua tese é um economista italiano chamado [Alberto] Alesina, mas essa tese já foi desmoralizada e, hoje, é questionada inclusive pelo próprio Fundo Monetário Internacional – FMI. Há uma harmonia de fundamentos, por isso que o Haddad fala que está conseguindo fazer uma política fiscal apertada, para pressionar o Banco Central a reduzir taxa de juros. No caso contrário, para conseguir fazer uma política expansionista, precisa aumentar a taxa de juros. O que há é um teatro funcional quando o governo federal discute desvinculação do BPC, que é um benefício para pessoas com deficiência e necessariamente também em situação de extrema pobreza, e para pessoas idosas em situação de extrema pobreza, a Tebet faz uma proposta em que essas pessoas não ganhariam mais um salário mínimo e sim um valor menor do que esse. Ela fez essa proposta publicamente. A esquerda não discute isso porque tem que olhar o Campos Neto, é óbvio que ele é um agente do capitalismo, do neoliberalismo, atrelado totalmente aos interesses do sistema financeiro. No entanto, quando esse teatro é armado, Tebet e Haddad acabam sendo blindados nos seus destaques e no qual o governo tem total controle. O governo teoricamente não poderia fazer nada. O governo defende que ele não pode agir, ao mesmo tempo que o Campos Neto pode fazer o que quiser e fala que ele não deveria fazer o que quisesse. Isto revela um teatro – David Deccache Autonomia do Banco Central A autonomia do Banco Central – e nisso reforço o alinhamento do Haddad com o Campos Neto – foi defendida pelo Haddad em 2018 e ele defende até hoje. Haddad é um defensor forte da autonomia do Campos Neto. O governo teoricamente não poderia fazer nada. O governo defende que ele não pode agir, ao mesmo tempo que o Campos Neto pode fazer o que quiser e fala que ele não deveria fazer o que quisesse. Isto revela um teatro. Quando o governo estudou o cogitou enviar uma proposta de lei para reverter a autonomia do Banco Central? Quando que o Conselho Monetário Nacional (formado por Tebet, Haddad e Campos Neto) cogitou encaminhar uma exoneração do presidente do Banco Central? O presidente da República poderia encaminhar, teria que alinhar com o Senado tem uma ampla articulação para isso acontecer, mas em que momento ela foi desenhada ou cogitada? O Conselho Monetário Nacional, que está na mão do governo federal, dentro dessa lógica de novo consenso macroeconômico, é quem define a meta de inflação a ser cumprida. Se a meta de inflação é muito conservadora, a política monetária do Banco Central também se torna muito conservadora e exige taxa de juros muito mais altas. Uma forma de forçar o Campos Neto a reduzir a taxa de juros, dentro do modelo que ele usa, é permitir uma meta de inflação um pouco mais alta – as taxas de inflação no mundo também estão um pouco mais altas. A meta poderia ser ampliada, por exemplo, para 4,5%, como sempre foi, isso forçaria automaticamente uma queda mais forte nas taxas de juros. Há uma harmonia entre eles, talvez, um teatro misturado com um desacordo de variáveis. O Campos Neto tem sido funcional para o governo porque, por exemplo, na época em foi aprovado o novo arcabouço fiscal, ninguém debateu o impacto que teria nos pisos da saúde, da educação, que era líquido e certo. Porque no mesmo momento, na mesma semana, o governo criou uma ofensiva contra o Campos Neto. Todo mundo se direcionou para o ataque ao Campos Neto e ninguém olhou para o arcabouço fiscal aprovado. Esse foi um teatro funcional e não se discutiu de forma democrática na sociedade. O Campos Neto sempre reforçou seu apoio à política de austeridade fiscal do Fernando Haddad, ele só acha que não está funcionando. E não está funcionando plenamente porque o Haddad ainda não quebrou os pisos, que é a pressão que o mercado financeiro tem feito em cima dele, constantemente. A austeridade fiscal e a gestão do neoliberalismo pela esquerda é o projeto das classes dominantes que entraram em guerra. Parte II. Entrevista especial com David Deccache Para o economista e assessor no Congresso, é importante que a esquerda dê sustentação aos avanços sociais sem abrir espaços para retrocessos Existe no Brasil, há quase dez anos, pelo menos desde o plano “Ponte para o futuro”, de Michel Temer, um projeto de austeridade que, no fundo, é um eufemismo para a questão real: a luta de classes. Ao assumir o governo, o Partido dos Trabalhadores tem procurado dar sinais às elites financeiras que seu mandato não será um entrave ao seu projeto. “A estratégia política do governo é mostrar ao capital e às classes dominantes que estes estão dominados pelas finanças e pelo modelo agroexportador, é mostrar que é capaz de fazer uma boa gestão do projeto das classes dominantes, que se manifesta na Ponte para o Futuro, que é política monetária conservadora e política fiscal de austeridade”, explica David Deccache em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, nesta segunda parte da conversa (a primeira parte pode ser acessada aqui). O cenário é complexo e o atual governo se sustenta no fato de que há “um controle absoluto da lógica neoliberal, em que, por um lado, há um neoliberalismo progressista e, por outro, um neoliberalismo autoritário. Nós precisamos construir algo para além dessas opções”, provoca o entrevistado. “Precisamos criar alternativas e, para isso, precisamos fazer o oposto do que esses economistas fazem, que é disputar ideologicamente a classe trabalhadora, mostrando os limites, os riscos e os fins dos projetos das classes dominantes”, propõe. “Fizemos muito certo em apoiar o Lula para tirar o Bolsonaro. Foi um acerto histórico. Porque hoje temos uma correlação de forças maior para derrotar o neoliberalismo. Um governo de extrema-direita que poderia avançar, inclusive na supressão de direitos democráticos, teria destroçado com a nossa luta. Agora que temos a possibilidade com o presidente Lula, precisamos ter condições, ao menos, de lutar”, descreve. David Deccache (Foto: Reprodução | Faixa Livre) David Deccache é doutor (UnB) e mestre (UFF) em Economia e assessor técnico na Câmara dos Deputados. É coautor do livro Teoria Monetária Moderna: a chave para uma economia a serviço das pessoas (Genérico: 2020). Confira a entrevista. IHU – Como o senhor avalia o voto de Gabriel Galípolo no Copom, corroborando a posição de Campos Neto na manutenção da Selic em 10,5%? David Deccache – O voto do Gabriel Galípolo revela esse teatro de forma explícita. Ele foi um dos criadores do novo arcabouço fiscal, que quebra os pisos da Saúde e da Educação, do Benefício de Prestação Continuada – BPC e da Previdência Social. E ele é vendido como a grande salvação para o Brasil. Como assim? Alguém que ataca a Saúde, a Educação, o BPC e a Previdência? E ele vai para o Banco Central como a grande esperança da nação de reduzir a taxa de juros e chega lá e vota junto com Campos Neto. Ou seja, não há um debate sério no Brasil, comprometido com a verdade, mas sim com um espetáculo. O voto dele torna as coisas um pouco mais óbvias. E tem gente dizendo que ele “está fazendo um teatro para enganar o mercado e assim ser aceito como presidente do Banco Central” nas redes sociais – tem que torcer para ninguém do mercado ler [risos]. Eu acho que a esquerda até poderia parar de falar isso, porque o presidente do Itaú talvez leia e descubra que está sendo enganado. São duas hipóteses: ou a esquerda descobre que está sendo enganada ou o CEO do Santander, que fez a última reunião com o Haddad sobre os pisos da Saúde e da Educação, está sendo enganado. Ele faz reuniões fechadas. Não sei se quem faz esses comentários na internet está tendo reuniões com Haddad a portas fechadas e tendo informações privilegiadas. Acredito mais que a esquerda está sendo enganada. A estratégia política do governo é mostrar ao capital e às classes dominantes que estes estão dominados pelas finanças e pelo modelo agroexportador, é mostrar que é capaz de fazer uma boa gestão do projeto das classes dominantes – David Deccache IHU – No caso do voto de Galípolo, quais os limites entre reforçar a independência do Banco Central em relação ao governo e, de outro lado, acenar como aliado do sistema financeiro? O que está em jogo nesta decisão? David Deccache – Obviamente, o Galípolo, assim como núcleo duro da política econômica do governo federal, tem como pressuposto ganhar a confiança do mercado financeiro. Esse pressuposto está inserido dentro de uma estratégia política maior. A estratégia política do governo é mostrar ao capital e às classes dominantes que estes estão dominados pelas finanças e pelo modelo agroexportador, é mostrar que é capaz de fazer uma boa gestão do projeto das classes dominantes, que se manifesta na Ponte para o Futuro, que é política monetária conservadora e política fiscal de austeridade. Eles estão dizendo às classes dominantes: “nós conseguimos gerir melhor o projeto de vocês, porque conseguimos o consenso da classe trabalhadora para ela ir contra os seus próprios interesses. Então conseguimos gerir esse projeto de retirada de direitos de forma mais suave, pelo consenso social”. Já a extrema-direita fala o seguinte para as classes dominantes: “não, nós precisamos de coerção, de suspensão de direitos democráticos para esse projeto se impor”. O que nós temos na prática é um controle absoluto da lógica neoliberal, em que, por um lado, há um neoliberalismo progressista e, por outro, um neoliberalismo autoritário. Nós precisamos construir algo para além dessas opções. Dada a opção do governo de governabilidade pela gestão do projeto das classes dominantes, o que o Galípolo faz é simplesmente um teatro para a esquerda e tenta se reafirmar para o mercado financeiro como alguém de confiança, votando junto ao Campos Neto. Eu gostaria de reforçar que isso tudo não é uma questão de subjetividade. Eu não faço uma crítica à pessoa Gabriel Galípolo ou à pessoa do Fernando Haddad, não é uma questão de subjetividade ou de perversidade individual, é uma questão estrutural que se manifesta em opções políticas. Se não fosse o Haddad conduzindo esse projeto junto com a Simone Tebet, seria outra dupla, talvez tão ligada aos setores da classe dominante quanto a Tebet; se não fosse o Galípolo, seria outro cumprindo esse papel. Eles são meros funcionários desse modelo. Eu gostaria muito de destacar aqui que não é uma crítica pessoal, é uma crítica ao modelo. O que nós temos na prática é um controle absoluto da lógica neoliberal, em que, por um lado, há um neoliberalismo progressista e, por outro, um neoliberalismo autoritário – David Deccache IHU – A rigor, quais os projetos de políticas econômicas do atual governo federal que pretendem mercantilizar e financeirizar a saúde e a educação no Brasil? David Deccache – Quando anunciam qual é a estratégia do governo federal de forma mais clara para a Saúde e a Educação, há esse teatro de que o governo está indo para cima do Campos Neto. Foi anunciada recentemente a desvinculação dos recursos da Saúde e da Educação como possibilidade de rebaixamento dos pisos. Se o governo envia uma Proposta de Emenda Constitucional - PEC e simplesmente acaba ou rebaixa muito os pisos, mudam a taxa de crescimento e a indexação, deixa muito explícito que o piso foi alterado e todos percebem. Recentemente surgiu na imprensa a hipótese da desvinculação da Saúde e da Educação, ou seja, o governo fala que vai manter o piso da Saúde, da Educação, “aqui não se mexe, mas também não se mexe no arcabouço fiscal”. Isso é terraplanismo matemático. Se não vai mexer em nada, os carros vão bater no caminhão, conforme o meu exemplo anterior. Para isso eles vão simular a manutenção dos pisos, mas na prática reduzirão fortemente com a desvinculação desses recursos. Ou seja, ele será colocado no orçamento, mas poderá ser desvinculado, remanejado durante o ano. Por exemplo, será possível retirar mais de 30% dos recursos da Saúde e da Educação para poder repassar para outras áreas – isso será discutido na imprensa oficialmente. PEC da DRU da Saúde e da Educação e da Seguridade Social Quero usar esse espaço para fazer uma denúncia do que, para mim, está muito claro: eu leio os jornais do mercado financeiro e o Estadão, e essa possibilidade aparece sempre, só que a esquerda não discute, para a esquerda é um não debate. Hoje, a desvinculação passa a ser a principal possibilidade do governo federal, porque na aparência mantém o piso, mas na essência está destruindo. E terá que ser votada uma PEC no fim do ano, que já está contratada, da Desvinculação das Receitas da União – DRU para com a Seguridade Social, que vence em dezembro de 2024. Por que essa possibilidade de DRU da Saúde e da Educação e da Seguridade Social aparecem? Porque no fim do ano será votada uma PEC. Necessariamente eles votarão essa PEC. E qual será o golpe? Eu trabalho no Congresso há mais de sete anos e já vi muito isso tendo passado pelos governos Temer e Bolsonaro. Tem uma PEC para mexer na DRU da Previdência, que já foi normalizada, e eles colocam em cima da hora para votação e, junto com isso, colocam também a DRU da Saúde e da Educação, o que na prática destrói os pisos. Mas esse debate vai aparecer somente depois das eleições municipais, porque falar disso agora é um tiro no pé. Estou alertando isso desde o período de transição, embora naquela época não era algo certo isso aconteceria. Em abril de 2023, voltei a sublinhar esse tema, quando o arcabouço fiscal foi apresentado. Falei que o Haddad atacaria os pisos e ele negou desde sempre, afirmando que isso não faria isso, inclusive de forma a desrespeitar a democracia mentindo em vários espaços públicos como o Congresso Nacional, no Conselho Nacional de Saúde, afirmando que não havia estudos sobre o assunto. Entretanto, hoje, ele fala abertamente que vai atacar os pisos. Demorou mais de um ano e meio e a esquerda ficou fingindo não ver esse ataque. Há algo sintomático: o Partido dos Trabalhadores lançou uma nota defendendo os pisos. Você nunca vai lançar uma nota de ataque a ministros que estão no governo do PT se o ataque não existe. Ora, isso prova que este projeto está avançando. A maioria dos parlamentares e candidatos a prefeito estão ignorando o debate. Ele tem impacto nos municípios e nos estados, então deveria ser um debate dos candidatos às prefeituras. Porque, necessariamente, se o governo federal diz que quer rebaixar os seus pisos, por que os municípios não solicitariam também o rebaixamento dos seus pisos? Há um risco generalizado para os setores da saúde e educação no Brasil. Obviamente esse risco está sendo calculado desde o início do governo, o de subfinanciamento. Inclusive eles têm a solução para este subfinanciamento, que são, precisamente, as Parcerias Público-Privadas - PPPs incentivadas pelo governo federal nos estados e municípios. Se colocar a lógica do sistema prisional na mão do mercado financeiro, inclusive com a emissão de debêntures, ele vai se focar na geração de lucros e não vai focar na questão social – David Deccache IHU – Do que se trata a PPP do governo federal para as escolas e creches? David Deccache – Esse cálculo é curioso porque em primeiro lugar as PPPs são consideradas privatizações ou expansões da educação pública a depender de quem as faça. Quando o [governador do Paraná] Ratinho Júnior avança num projeto de privatização de escolas exatamente igual ao que está previsto no programa de parceria de investimentos, a esquerda considera privatização. Porém, quando é o governo federal estimulando a mesma coisa, é expansão da educação pública. O que são essas PPPs? O controle e a gestão financeira da escola ficam na mão de uma empresa, da iniciativa privada. É óbvio que o Eduardo Leite, o Ratinho Júnior e o Tarcísio de Freitas alegam que os professores continuam sendo servidores públicos e o que está sendo dado às empresas é a gestão, mas as máquinas e os equipamentos, o prédio, ficam com a iniciativa privada. A mesma lógica será aplicada aos presídios, que continuarão com a Polícia Penal atuando no monitoramento e nas questões de polícia, mas todo o resto (alimentação, manutenção do prédio, monitoramento de segurança) passa à inciativa privada. Qual é o problema disso, afinal muita gente diz que não é privatização. A questão não é se o policiamento será feito por um policial penal ou por um contratado por Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. O problema fundamental é que a empresa que administrará esse negócio fará com vistas ao lucro, e para que isso aconteça deve-se gerar o aumento da população carcerária, por exemplo. Um outro ponto ainda no nível dos presídios é que haveria uma pressão para uma maior precarização – hoje já precário – do trabalho da população carcerária. As empresas poderiam vislumbrar na população carcerária uma massa de trabalhadores sem direitos e fazer pressão, com um discurso bem reacionário de que os detentos vão pagar a própria pena, sem direito algum, tendo que trabalhar de graça, escravizados. Então, se colocar a lógica do sistema prisional na mão do mercado financeiro, inclusive com a emissão de debêntures, ele vai se focar na geração de lucros e não vai focar na questão social. A opção é construir um novo senso comum para a classe trabalhadora, como construímos com o PL do Estupro: enfrentando de frente os reacionários. É disputar a sociedade – David Deccache Isso é mais fácil de compreender quando observamos o setor educacional. Iremos aumentar o poder desses conglomerados, que hoje invadiram e dominaram o ensino superior no país, todos ligados ao mercado financeiro. As pessoas não lembram, mas nós iremos aumentar o poder deles. Vejam o interesse da Multilaser na privatização de escolas em São Paulo e no Paraná. Tudo isso para aumentar o controle dos grandes conglomerados na educação. Quais são os interesses por trás, mesmo que inicialmente os professores continuem servidores públicos? A pressão será por mais aulas EaD, algo pior que o Novo Ensino Médio e a precarização total no que se refere aos custos do ensino, mas com aumento dos lucros. Repito: se o governo federal está financiando e tem dinheiro no BNDES para dar para uma empresa construir uma escola, por que não tem dinheiro para dar para o município? Isso não é óbvio? João Campos, prefeito de Recife, vai abrir 9 mil vagas em creches com parcerias público-privadas com dinheiro do BNDES. Não poderia ter recebido dinheiro para a prefeitura fazer as creches? Estamos perdendo o controle da Educação, da Saúde, do sistema prisional e do meio ambiente. No governo federal atual, estamos com a ampliação da lógica das PPPs. Por que precisa isso? Para ganhar benefícios extras, como as debêntures que comentei anteriormente. Se o governo federal está financiando e tem dinheiro no BNDES para dar para uma empresa construir uma escola, por que não tem dinheiro para dar para o município? Isso não é óbvio? – David Deccache Lógica de privatização via PPPs O governo federal atual inseriu o sistema prisional e os setores de saúde e educação entre as áreas prioritárias para as PPPs, como o meio ambiente. Aliás, o meio ambiente é um caso muito grave porque implica, como em Jericoacoara, no Ceará, a criação de uma PPP que explora um perímetro de meio ambiente, mas pouco se fala, porque é o governo federal pensando. O que se fala é que não há recursos para o governo gerir e organizar o manejo sustentável. Claro, ele está depenando o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], a estrutura orçamentária de quem deveria fiscalizar e não tem recurso propositalmente para entrar na lógica das PPPs, a lógica de privatização acima de tudo. Por que eu digo isso? Porque um presídio não será privatizado na lógica clássica de privatização. Isto é óbvio, pois ninguém pagará para ficar preso – chegar lá e dizer “me prendam”. Precisa haver uma parceria entre Estado e empresa, porque o Estado punitivista quer prender a população jovem e negra, em especial, e quer vender esses presos para a iniciativa privada, que receberá todo o mês por estes presos. É por isso que se trata de uma parceria. Hoje, cada jovem desses rende, diariamente, R$ 280,00 (essa é a diária). Isso é um absurdo completo, uma política racista, tanto que o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, se coloca absolutamente contrário a essa lógica. Ele traz mais um aspecto que é: quando você privatiza o sistema prisional, traz-se a possibilidade do controle dos presídios pelo crime organizado que é, hoje, muito poderoso do ponto de vista econômico e em se mancomunar, por meio de empresas laranjas que privatizam o sistema prisional, controlando-o de forma ainda mais forte. O governo federal atual inseriu o sistema prisional e os setores de saúde e educação entre as áreas prioritárias para as PPPs, como o meio ambiente – David Deccache Veja como a lógica de privatização via PPPs vai se tornando progressivamente mais perversa; eu diria: vai se tornando uma política racista. Há a Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados que está realizando uma audiência pública com a participação de integrantes do Ministério dos Direitos Humanos, os quais fizeram críticas duríssimas a esta política federal. O Ministério da Fazenda negou o envio de um representante para discutir com os representantes do Ministério dos Direitos Humanos. Há um projeto predominante no governo federal que é o do Ministério da Fazenda. Quando temos um ministro como Silvio Almeida, um dos grandes intelectuais e militantes no Brasil contra essa lógica de racismo estrutural atrelada à austeridade fiscal, manifestando-se enfaticamente sem nenhum apoio da militância ou do governo, percebemos qual é o projeto dominante. A austeridade fiscal, como a esquerda sempre disse e parou de dizer, é fascista. O BPC que a Simone Tebet quer atacar, quem é afetado predominantemente? A população que mais recebe BPC são mulheres idosas negras em situação de extrema pobreza. Isso é, definitivamente, um racismo estrutural e estruturante de nossa sociedade. Caso essa proposta anunciada para o BPC estivesse valendo desde 2003, por vinte anos, qual seria o valor, considerando que hoje ele é R$ R$ 1.412? Seria R$ 250,00. Isso é um dado. Essa proporção vai se manter caso seja aprovado. Em vinte anos as pessoas receberão algo equivalente a isso. Algo desse tipo deixará as pessoas na mais absoluta miséria. Ao mesmo tempo que joga a população idosa do futuro na miséria mais absoluta, ganhando menos que o salário mínimo, que hoje já é pouco para sobreviver, ela quer destruir o piso da Saúde, num cenário em que a população idosa precisará cada vez mais da saúde pública. Tudo isso ocorre num mundo em crise climática, onde as pessoas precisarão cada vez mais de assistência médica. Estamos caminhando para um ponto de não retorno, o que é dramático em um governo de esquerda. Precisa haver uma parceria entre Estado e empresa, porque o Estado punitivista quer prender a população jovem, negra, em especial, e quer vender esses presos para a iniciativa privada, que receberá todo o mês por estes presos – David Deccache IHU – Mesmo economistas de esquerda costumam dizer que não há outra saída a não ser negociar com o mercado, o que no fundo comprova a tese de que à economia só resta uma alternativa. Em que sentido isso é verdadeiro? Que outras saídas, sobretudo em benefício dos mais pobres, existem? David Deccache – Eu tenho refletido muito sobre essa questão. Esta fala dos economistas progressistas busca o consenso da classe trabalhadora para irem contra os seus próprios interesses. Ou seja, fazer concessões ao mercado financeiro seria a única possibilidade para derrotar a extrema-direita. Para derrotarmos a direita, temos que fazer a gestão desse neoliberalismo que é cada vez mais agressivo. Então a classe trabalhadora deve apoiar o ataque violento contra os pisos, contra o BPC, contra a privatização dos presídios porque essa será a única forma daqui para a frente – e por toda a eternidade – para não termos a volta da extrema-direita. Isso é um absurdo completo. Precisamos criar alternativas e, para isso, precisamos fazer o oposto do que esses economistas fazem, que é disputar ideologicamente a classe trabalhadora, mostrando os limites, os riscos e os fins dos projetos das classes dominantes; mostrando que isso levará a um desastre climático de proporções inimagináveis em poucos anos. O que aconteceu no Rio Grande do Sul será recorrente. A política que a Tebet propõe vai afetar os idosos do país. A queda do piso da saúde e da educação vai afetar, especialmente, a população mais pobre, mostrando como essa lógica de destruição dos serviços públicos vai levando a classe trabalhadora a recorrer cada vez mais aos serviços privados, que são horríveis, pagando fortunas aos planos de saúde, pagando muito pela educação dos filhos, com salários cada vez menores e tendo cada vez menos serviços públicos e aumentando o endividamento com os bancos. Enquanto isso, os bancos vão se apropriar dessa outra renda das famílias, com taxas de juros escorchantes. Mostrar isso para a população é fundamental para mudarmos a correlação de forças da sociedade. Mas o que está sendo feito é, exatamente, o oposto: blindando o neoliberalismo para mostrar às classes dominantes que eles têm o controle absoluto da classe trabalhadora, porque eles têm o consenso, e a classe trabalhadora irá se ferrar em silêncio. Essa fala dos economistas progressistas busca o consenso da classe trabalhadora para irem contra os seus próprios interesses. Ou seja, fazer concessões ao mercado financeiro seria a única possibilidade para derrotar a extrema-direita – David Deccache Enfrentar os reacionários A opção é construir um novo senso comum para a classe trabalhadora, como construímos com o PL do Estupro: enfrentando de frente os reacionários. É disputar a sociedade. Essa é a única forma que nós temos para salvar o mundo diante de uma catástrofe. Agora neste momento que estamos conversando sobre taxas climáticas capazes de tornar a vida insuportável nos próximos anos, um “novo normal” em que o que aconteceu no Rio Grande do Sul seja recorrente. Por exemplo, a tragédia do Rio Grande do Sul deveria ser disputada com a sociedade. O governo deveria lançar naquele momento uma ampla ofensiva contra a austeridade fiscal, falando que milhões de pessoas foram afetadas diretamente por causa do agronegócio que está destruindo o meio ambiente. Deveria mostrar que é a austeridade fiscal que impede medidas sérias de mitigação, inviabilizando políticas de adaptação climática. Se tivéssemos resiliência, poderíamos evitar muitas perdas materiais e humanas. A partir de agora, não deveríamos deixar que a austeridade fiscal nos impeça de salvar vidas, não tem mais teto de gastos. Era isto o que o presidente Lula precisava fazer, e a população ficaria do lado dele. Se falasse: “Eu vou salvar essas vidas, vou reconstruir o Rio Grande do Sul, custe o que custar. Vou reconstruir esse país inteiro. Eu vou fazer um grande projeto de adaptação e mitigação de mudança climática em todo o país porque isso pode acontecer no Rio de Janeiro, no Centro-oeste, no Norte e Nordeste, cada um com suas especificidades, e não vou permitir que vidas sejam perdidas. Para isso, vou revogar o arcabouço fiscal”. O mercado financeiro iria chiar, mas quem ganharia o debate? A esquerda ganharia o debate, tenho certeza. E não faz porque isso está totalmente fora da estratégia, que é de gestão do capital. Precisamos criar alternativas e, para isso, precisamos fazer o oposto do que esses economistas fazem, que é disputar ideologicamente a classe trabalhadora, mostrando os limites, os riscos e os fins dos projetos das classes dominantes – David Deccache Guerra de classes Acabou este tipo de gestão que funcionou nos governos Lula anteriores, onde havia certo espaço de negociação de concessões. Hoje, é uma gestão na qual a austeridade fiscal funciona como uma arma na guerra de classes. Portanto, estamos gerindo um projeto das classes dominantes que entraram em guerra. Não é um projeto de conciliação de classes, é guerra de classes. É uma guerra contra a classe trabalhadora do neoliberalismo e suas especificidades. O termo sobre essa concepção de austeridade fiscal é de uma intelectual que eu gosto muito, a Clara E. Mattei. Ela mostra como a austeridade fiscal é um elemento de guerra de classes e como isso é a porta de entrada do fascismo. Quando eles colocam como opção um governo progressista que preserva as liberdades individuais e a democracia como a única opção ao neoliberalismo autoritário e agressivo, que suspende a democracia e nós temos que escolher o menos pior, ficaremos algum tempo com o neoliberalismo progressista destruindo tudo – Saúde, Educação e salário mínimo. Isto vai gerar um esgarçamento inevitável no tecido social. É uma gestão na qual a austeridade fiscal funciona como uma arma na guerra de classes. Portanto, estamos gerindo um projeto das classes dominantes que hoje entraram em guerra, não é um projeto de conciliação de classes – David Deccache Aliás, é insustentável manter a popularidade de um governo que gere esse neoliberalismo progressista, que vai criar uma insatisfação popular e social tão grande, a ponto de a extrema-direita se fortalecer de forma brutal. Necessariamente, isto leva à ascensão da extrema-direita no Brasil e no mundo, que é o que estamos vendo. Com o esgarçamento social dado pelo modelo neoliberal, inclusive na sua versão “progressista” – isso não existe, ele sempre vai ser reacionário, autoritário, antidemocrático, mas na sua aparência é progressista –, vamos transitar entre fases de um neoliberalismo com aparência progressista, mas, mesmo assim, autoritário, antidemocrático e agressivo, e de um neoliberalismo explicitamente autoritário, violador de direitos fundamentais, inimigo da democracia. Então as classes dominantes alteram entre a gestão do projeto neoliberal pelo consenso e a gestão pela coerção. Implantar um projeto socialista é alternativa para a sobrevivência Nós devemos superar essa lógica. Apesar de termos um Congresso Nacional conservador, de ter um grande poder no mercado financeiro, na Faria Lima e no agronegócio exportador, apesar disso tudo, tem uma coisa que eles não podem nos impedir, que é fazer uma guerra nos corações e mentes da classe trabalhadora. Não tem uma votação no Congresso que impeça o presidente Lula de enfrentar o novo arcabouço fiscal e ampliar os gastos com Saúde, em vez de reduzir. O presidente deveria ir à tevê e dizer que “vai revogar o arcabouço fiscal porque eu não quero mais fila no SUS e o mercado financeiro não deixa. Me apoiem”. Ele pode perder no Congresso, pode. Mas tem que lutar. A única alternativa à classe trabalhadora, para sobreviver a este futuro drástico que se apresenta, é a superação da lógica do capital, é a construção de um projeto socialista. Trata-se de uma questão de sobrevivência, de não caminharmos para a extinção. Precisamos fazer a disputa ideológica. O governo faz o oposto: usa os aparelhos ideológicos do Estado para legitimar políticas de austeridade fiscal. O único enfrentamento feito é um teatro com o Campos Neto, justamente em todos os momentos que ataques sociais estão sendo planejados pela equipe econômica, para direcionar a militância para alguma coisa que teoricamente o governo federal não pode fazer nada, que é mandar embora o presidente do Banco Central. Basicamente é isso o que acontece, inclusive usando os aparelhos ideológicos contra a classe trabalhadora ao legitimar a austeridade fiscal como a única saída – e não é a única saída. Extrema-direita cínica, oportunista e canalha Vou dar um exemplo claro que aconteceu há pouco tempo, quando a Tebet e o Haddad anunciaram pela primeira vez, de maneira formal, explícita, o ataque aos pisos da Saúde e da Educação. A extrema-direita, que é cínica, oportunista e canalha, sem nenhum piso moral, se colocou contra os pisos. O deputado Nikolas [Ferreira], presidente da comissão de Educação e sempre atacou este setor, os professores e a militância da educação pública, colocou-se como defensor do piso da Educação contra a esquerda. Ele apoiou a greve dos professores, que estão sendo precarizados. Isso pode se tornar recorrente e estrutural. É um risco muito grande. O mercado financeiro está com medo de ter uma reação da classe trabalhadora, de uma derrota do projeto neoliberal. É por isso que o mercado está muito nervoso – David Deccache Compromisso com a classe trabalhadora para continuidade do governo A austeridade fiscal e a gestão do projeto do neoliberalismo pela esquerda não são as únicas saídas. São também um elemento funcional para o capital destruir a classe trabalhadora e que vai fortalecer a extrema-direita. A nossa luta, dessa pequena parcela da esquerda que tem um compromisso com a classe trabalhadora, não enfraquece o governo. Pelo contrário, nossa luta é o que freia e o que pode salvar o governo da sua autodestruição pelas políticas agressivas de austeridade fiscal. Quem lutou pela greve da Educação, estava lutando também pela manutenção de condições minimamente adequadas à continuidade do governo. Afinal, se deixar o Haddad ter correlação de forças, isto destruirá tudo, irá esgarçar o tecido social de tal forma que será impossível o governo ser sustentado pelo próprio consenso que ele deseja. Isto abrirá espaço para a extrema-direita. Eu diria mais: o Haddad até agora não governou. Ele conseguiu impor o ajuste fiscal que ele quer, porque a expansão fiscal de 2023 foi como nunca vista na história. Ele não conseguiu controlar os gastos como queria. Em 2024, ele também não está conseguindo, por isso que o mercado financeiro fica nervoso. O mercado financeiro está com medo de ter uma reação da classe trabalhadora, de uma derrota do projeto neoliberal. É por isso que o mercado está muito nervoso: o medo de uma luta da classe trabalhadora crescer em defesa dos pisos da Saúde e da Educação. Um dia antes da economista Maria da Conceição Tavares morrer, o Haddad fez uma reunião com o CEO do Santander e vários agentes do mercado financeiro. Falo nela porque foi uma grande economista política e considerava a luta de classes. Há um vídeo interessante dela circulando, em que diz que política importa muito. Eles fingem que é só técnico, que é um debate burocrático, que eles não fazem política, que são só técnicos, que é tudo burocrático, mas política para eles importa muito. Eles fazem reuniões em jantares às sextas-feiras para fazer política, em um café da tarde para fazer política; houve uma reunião do Haddad com o CEO do Santander, um dia antes da morte da Maria da Conceição. Nessa reunião, a polêmica foi que o mercado financeiro vazou – o Haddad reclamou disso – sobre a estrutura do novo arcabouço fiscal ser sustentável. O mercado financeiro disse: “do jeito que está, vai derrubar o novo teto, porque os pisos da Saúde, da Educação, da Previdência e do BPC continuam crescendo, já estão próximos de serem atingidos e estamos com medo de quebrar o novo teto de gastos. Se isso acontecer, o pilar do nosso projeto será quebrado. O que você vai fazer quando os pisos serão quebrados?” Colocaram o ministro na parede. Este disse que, se dependesse dele, ele faria, mas que dependia do presidente Lula e que havia resistências. Quando eles enxergam alguma resistência possível, em lugar de socorrerem o Haddad como sempre, jogaram na imprensa. Daí o Haddad reclama que isso não foi acordado na reunião e que quebraram a confiança. Eles saíram atacando porque há alguma resistência na esquerda ainda e isso incomoda. A Febraban recentemente lançou uma nota de apoio a esse projeto e ao Haddad. Os editoriais de vários jornais – Folha, Estadão e Globo – explicitamente apoiam essa política e o Haddad como o seu grande gestor. O ministro ganhou duas capas da revista Veja em um ano, elogiosas, como se ele fosse o novo Fernando Henrique Cardoso por conta desses ataques. Ao lerem a entrevista, muitos dirão que a Febraban, a Veja, o Estadão e o Globo estão lutando pela classe trabalhadora, e que eu estou contra a esquerda e a classe trabalhadora porque estou “batendo” no Haddad. É um absurdo a classe trabalhadora achar que a Febraban está defendendo os interesses trabalhistas, porque é óbvio que não. O projeto em curso é destrutivo e vai levar ao crescimento da extrema-direita, que é o que se observa no mundo. IHU – Deseja acrescentar algo? David Deccache – Recentemente, o presidente Lula foi entrevistado e uma jornalista perguntou sobre os pisos da Saúde e da Educação, sobre as questões da Previdência e do BPC, que são propostas. O presidente Lula responde explicitamente: “Nada está descartado. Eu sou pragmático”. O que está acontecendo é que uma parte da esquerda está fazendo um jogo muito covarde com a população mais pobre desse país: fingir que esse debate não está acontecendo para não permitir que haja uma articulação, desde já, muito forte da classe trabalhadora para resistir ao ataque aos pisos. Isto desarticula todo mundo. Fingem que o debate não existe para, após a eleição, quando as medidas forem enviadas ao plenário da Câmara dos Deputados em conluio com o Arthur Lira, então ser aprovado sem maior resistência. Isto faz parte da política pós-2016 de Michel Temer, que é aprovar tudo em regime de urgência, de forma atropelada, sem passar por comissões, sem ter um debate público, nas universidades e nas ruas, nos nossos canais progressistas. Essa é uma forma de atuação no Legislativo que tenho acompanhado desde sempre. Regime de urgência O novo arcabouço fiscal foi aprovado de forma antidemocrática e autoritária – o neoliberalismo é autoritário – e o Haddad não permitiu que ele fosse debatido em comissões. E ele fez um acordo com o Arthur Lira para que não houvesse o debate em comissões e fosse ao plenário em regime de urgência. A autonomia do Banco Central no governo Bolsonaro foi aprovada em regime de urgência, aproveitando a pandemia para não ser debatida nas comissões e para o povo não conhecer o debate. Temos uma série de propostas neoliberais, de austeridade e autoritárias que passam dessa forma – este é o plano. Todo mundo sabe que no Brasil, se o Haddad for honesto e respeitar a democracia, tirando o mérito da questão, se defende ou não a quebra dos pisos, ele deveria respeitar a democracia. Fernando Haddad mente ao falar que o arcabouço fiscal é sustentável pelo aumento de receitas. Isso eu posso provar matematicamente. Ele poderia enviar sua proposta para ser exaustivamente debatida no âmbito das comissões da Câmara dos Deputados. Quero encerrar com algo que não falei durante a entrevista inteira, mas que considero importante. Além desse caráter todo da austeridade fiscal, é fundamental entender que a austeridade fiscal tem um elemento para disciplinar a classe trabalhadora, porque o desemprego exerce um caráter disciplinador. O medo do desemprego disciplina, e a pessoa fica recuada e desorganizada. Precarização e violência dos direitos trabalhistas Além disso, a uberização o trabalho, a gestão dessa precarização e a violência de todo e qualquer direito trabalhista na gestão do trabalho pelas plataformas, que é uma gestão muito mais dura do que aquela do gerente da fábrica, exige uma nova estrutura legal que legalize essa violação completa de direitos sob a aparência de empreendedorismo e liberdade. É uma intensificação brutal, como nunca vista antes, da exploração e da violação de direitos, ao mesmo tempo que se vende uma liberdade plena e total para a classe trabalhadora, via gestão por plataformas do trabalho. Nessa lógica, entrou em pauta no Brasil o PLP 12/2023, da Uber, debate que também é mundial. Esse PLP simplesmente legaliza a uberização do trabalho e joga a CLT no lixo; a proposta tem vários problemas. Mas, no Brasil, em vez de discutirmos a superação qualitativa da CLT para a ampliação de direitos e o enquadramento dessas plataformas, o que debatemos é a legalização da uberização sobre a pasta de que não há exploração do capital e trabalho mais no mundo. É isso o que o projeto diz quando ele fala que essas plataformas são simples intermediárias entre o motorista e o passageiro, logo, não há relação de exploração e trabalho. No entanto, na própria legislação, a possível lei que está sendo criada garante instrumentos de subordinação total da classe trabalhadora à plataforma. Por exemplo, a plataforma poderá seguir punindo duramente o trabalhador desligando-o do aplicativo, que é a forma como ele sobrevive. Alguém poderia dizer que há um contrato estabelecido entre as partes que vai determinar o que a plataforma pode fazer em termos de desligamento. É como se houvesse uma simetria de forças na elaboração desse contrato. O trabalhador toma o contrato como dado, é unilateral. Ele é assinado quando o trabalhador aperta um botão no aplicativo, ele nem lê. É uma legalização dessa lógica brutal. O piso estabelecido por hora trabalhada é extremamente baixo e, em algumas corridas, não paga nem sequer o custo que o trabalhador tem com o carro, com o combustível e com a alimentação. O trabalhador pode ganhar muito, muito, muito menos do que um salário mínimo por hora, se for levar em conta os custos de verdade e não os que estão no projeto de lei. Retorno ao século XIX O mais assustador de tudo é que eles colocam uma carga horária máxima semanal: uma carga horária diária máxima de 13 horas, mas de domingo a domingo, o que significa que o trabalhador, por semana, tem um teto de 91 horas. O curioso é que o PLP diz que as 91 horas semanais – antigamente a esquerda lutava por 30 horas semanais – é necessário para o bem-estar do motorista e para a segurança do passageiro. Estamos normalizando uma situação que seria considerada brutal no século XIX, quando o Marx escrevia em uma situação de carga horária de 670 horas. Obviamente, na questão em que as plataformas passam a ser no modo e na aparência simples intermediárias, quando na verdade elas são os fundamentos da exploração da classe trabalhadora, temos algo muito sintomático. Este projeto cria gênero e espécie, onde o gênero são as plataformas intermediadoras de serviços e o trabalhador é um autônomo que utiliza essas plataformas de intermediação, e depois vem o específico, que é a plataforma de intermediação de serviços de transporte individual e motoristas autônomos por plataforma. Gestão da classe trabalhadora por plataformas Aqui já existe um embrião do que pretendem fazer no Brasil: tornar toda a classe trabalhadora gerida por plataformas e aplicativos que monitoram 24 horas por dia, que punem sem nenhum tipo de direito ou garantia e ocultando pela lei a exploração entre capital e trabalho. Isso será uma referência para novos ataques. Os próximos serão os entregadores, depois teremos as trabalhadoras domésticas, os professores, arquitetos, profissionais da saúde. Por exemplo, uma escola pode chamar o professor para dar aula, se ele quiser, pelo aplicativo. “Ele é um empreendedor agora, ele vai lá dar aula”. Então toda a classe trabalhadora corre o risco de ser uberizada, por controles monopolistas. Portanto, temos também um ataque trabalhista – um ataque completo em curso no Brasil que não está sendo discutido. Esse PLP 12/2023 cai porque a classe trabalhadora se organiza de forma muito forte e consegue derrotar o lobby da Uber, que é poderosíssimo. Só que essa derrota da Uber parece uma tática de dar “um passo atrás para depois dar dois passos à frente”. O governo não poderia votar algo dessa magnitude de ataque próximo à eleição. Isso é muito impopular e os motoristas se organizaram. Não há espaço para permitirmos a retirada de direitos e retrocessos – David Deccache Revolta foi capturada pela extrema-direita Outra lição: a extrema-direita captou a revolta deles e é mentira da esquerda que eles não querem direitos, pois isso piora a situação deles em relação ao que é hoje. A situação deles é material. Eles vão esperar passar as eleições para voltar com esse ataque. E certamente a classe trabalhadora vai se desarticular achando que já ganhou enquanto eles aumentam o número de armas para nos atacar. Por isso, é importante que os partidos, os quadros políticos, os militantes e os movimentos sociais não recuem como estão fazendo. Como estão fazendo na questão do piso da Saúde e da Educação, do PLP da Uber, na proposta racista e destrutiva da Simone Tebet, na questão da privatização de presídios e escolas. Eu vi dezenas, talvez centenas, de quadros políticos falando da privatização de escolas do Ratinho Júnior, sem falar que essa privatização tem a possibilidade de contar com o apoio do BNDES e com as renúncias tributárias do governo federal, com as garantias do Tesouro, porque estão inseridas ali. Há um projeto que a esquerda se acovarda em debater para desarmar a classe trabalhadora, para que ela, quando for atacada, seja destruída e massacrada. A esquerda está atuando para desarmar a classe trabalhadora diante desses ataques. Isto é covardia e é inaceitável. É inaceitável desarmar a classe trabalhadora fingindo que não tem nada acontecendo, para mais um presídio ser privatizado, coisa que acontece em Santa Catarina. O governo vai lançar um edital de privatização no estado catarinense e ninguém fala nada, simplesmente para a classe trabalhadora não resistir. Quanto a esta entrevista que eu dei até aqui, boa parte da esquerda finge que não conhece nada do que eu falei. Faz questão de não saber, porque sabe que, se armar a classe trabalhadora, haverá resistência. E se “tiver resistência, vai prejudicar o governo”. Depende. Ele pode recuar e não apresentar projetos de lei, por exemplo, de retirar pisos e esse é o papel da luta de classes. Não há espaço para permitirmos a retirada de direitos e retrocessos. Fizemos certo em apoiar o Lula para tirar o Bolsonaro. Foi um acerto histórico. Porque hoje temos uma correlação de forças maior para derrotar o neoliberalismo – David Deccache Um acerto histórico Fizemos bem em apoiar o Lula para tirar o Bolsonaro. Foi um acerto histórico. Porque hoje temos uma correlação de forças maior para derrotar o neoliberalismo. Um governo de extrema-direita que poderia avançar, inclusive na supressão de direitos democráticos, teria destroçado com a nossa luta. Agora que temos a possibilidade com o presidente Lula, precisamos ter condições de lutar ao menos. É um absurdo não fazermos greve agora, não lutarmos pelos pisos agora, afinal o elegemos para lutar. Isso porque a extrema-direita age com coerção, com força, com brutalidade. É um absurdo completo, um cinismo, uma covardia com a classe trabalhadora a esquerda negar a luta. Desarmar a classe trabalhadora no enfrentamento contra a Uber, no enfrentamento contra os planos de saúde, contra os bancos na tentativa de destruir a previdência pública e assumirem os planos de previdência. Sobre os fundos de previdência, há uma questão. Quando o governo fez as debêntures, no projeto consta que esses benefícios atrairão os recursos de previdência privada, os quais serão utilizados para a privatização dos presídios. Então se financeiriza a previdência para lançar na privatização dos serviços públicos. É brutal, não tem outro nome. É o neoliberalismo.
https://movimentorevista.com.br/2025/01/o-teatro-lula-x-campos-neto-acabou/
O teatro Lula x Campos Neto acabou
Declaração de Haddad sobre inflação resume a essência do alinhamento entre o governo e o Banco Central