Retirado do site do Ladislau Dowbor (https://dowbor.org/)
https://dowbor.org/wp-content/uploads/2022/04/22-Resgatar-func%CC%A7a%CC%83o-social-da-economia.pdf
RESGATAR A FUNCÃO SOCIAL DA ECONOMIA
Uma questão de dignidade humana
"A desigualdade é antes de tudo uma construção social, histórica e política"
Thomas Piketty
“Podemos certamente dizer que a nossa proficiência tecnológica
excede de longe o nosso desenvolvimento moral, social e político”
Oliver Stone e Peter Kuznick
I – PEQUENA HISTÓRIA DA EXPLORAÇÃO
A revolução digital está tendo impactos tão profundos quanto em outra era teve a
revolução industrial. O que chamamos de capitalismo tem as suas raízes na
industrialização, que envolveu transformações tecnológicas, mas também de relações
sociais de produção, com o trabalho assalariado e o lucro do capitalista, além de um
marco jurídico centrado na propriedade privada dos meios de produção. Com a
revolução digital, que envolve uma expansão radical das tecnologias, bem como a
generalização da economia imaterial, a conectividade global, o dinheiro virtual e o
trabalho precário, a própria base da sociedade capitalista se desloca. Em particular, a
apropriação do produto social por minorias ricas, mas improdutivas, já não exige
geração de emprego e produção de bens e serviços. Passa pela intermediação do
dinheiro, do conhecimento, das comunicações e das informações privadas. Onde
dominava a fábrica hoje temos o domínio das plataformas em escala planetária, que
exploram não só as pessoas, por exemplo através do endividamento, mas também as
próprias empresas produtivas através dos dividendos pagos a acionistas ausentes.
O presente estudo está centrado precisamente no que está mudando no que chamamos
de modo de produção capitalista. A atividade industrial permanece, sem dúvida, como
permaneceu a atividade agrícola diante da revolução industrial, mas o eixo de
dominação e controle já não está nas mãos dos capitães da indústria, está na mão dos
gigantes financeiros como BlackRock, de plataformas de comunicação como Alphabet,
de ferramentas de manipulação como Facebook, de intermediários comerciais como
Amazon. O mecanismo de apropriação do excedente social mudou, e com isso mudou a
própria natureza do sistema. Estamos no meio de uma transformação profunda da
sociedade, nas suas dimensões econômicas, sociais, políticas e culturais, gerando o que
tem sido chamado de crise civilizatória. Estamos transitando para outro modo de
produção, e o presente estudo sistematiza os novos mecanismos. Na última parte
propomos caminhos.
A eterna exploração
Em diversas eras e sociedades, a apropriação do produto social por minorias sempre
esteve no centro da organização da sociedade como um todo. O ponto de partida é a
própria existência do excedente social. Quando a produtividade de uma sociedade se
eleva, permitindo que se produza mais do que o básico necessário para as famílias,
aparecem elites que reivindicam, por alguma razão, e com justificativas mais ou menos
duvidosas, o direito a ter mais do que os outros, apropriando-se do produto de terceiros.
No modo de produção escravagista, apropriavam-se do que produzem os escravos, uma
apropriação baseada na força, e explicada como legítima propriedade de pessoas.
Quando Lincoln consegue que se aprove, no século 19, o fim da escravidão, não se
indenizou os escravos, e sim os donos de escravos, por perderem “propriedade”. Sempre
houve explicações, que hoje chamamos de narrativas, para justificar o absurdo: eram
pretos, ou selvagens, ou não teriam alma, como se dizia na época, ou ainda foram
capturados em “guerra justa”, como também se dizia. O essencial era que produzissem
um excedente, que permitia o luxo dos proprietários e o financiamento da repressão aos
numerosos levantes. Era o modo de produção escravagista, injusto, mas estável, durou
muitos séculos, inclusive com leis que regiam o sistema da propriedade de seres
humanos e religiões que as sacramentavam. A razão do mais forte sempre busca parecer
justa.
No sistema feudal, elites se apropriaram da terra, base de qualquer economia antes que
surgissem as máquinas. Os senhores feudais, por razões diversas, mas essencialmente
por disporem de armas e fortificações, em luta uns com os outros terminavam por
delimitar os feudos, sendo que a população rural que vivia nas terras não seria
propriedade do aristocrata, mas seria sim regida por sistemas complexos de obrigações
que proibiam que deixassem o feudo. Os homens eram servos, serviam. O excedente
produzido era apropriado, na idade média e em grande parte da renascença – na Rússia
até 1917 – pelos “senhores”. Os trabalhadores da terra eram obrigados a ceder aos
aristocratas grande parte da sua produção, riqueza que permitia que o nobre tivesse um
castelo, vivesse com luxo, e pudesse pagar a tropa que assegurava que o sistema se
mantivesse.
Aqui também houve inúmeras revoltas e repressões. Parte do excedente servia também
para sustentar os conventos, numa religião que, a partir do século IV, se aliara aos
poderosos, e justificava o sistema como vontade divina. As leis asseguravam a
coerência do sistema, as regras do jogo por assim dizer, inclusive, por exemplo, na
Europa, o jus primae noctis, que dava ao aristocrata o direito de se apropriar da primeira
noite de casamento de uma camponesa. Os poderosos gostam da legalidade, conquanto
sejam eles a fazer as leis. E para os que a contestavam havia também a inquisição e
outros sistemas repressivos. De toda forma, era um modo de produção, também durou
séculos, definido por uma base econômica, a terra, relações sociais de produção, a
servidão, e formas de extração do excedente sob forma de imposições de diversos tipos.
O conjunto era regido por regras, em boa parte respeitadas. A apropriação do excedente
era baseada nas leis, justificadas pelo sangue azul dos nobres, sancionada pela igreja
com narrativas, e garantida pela repressão militar. Os bailes de Versalhes ou de Viena
tinham de ser financiados por alguém. Witold Kula, um historiador polonês, escreveu
para o sistema feudal o que Marx escreveu para o sistema capitalista. Era um sistema,
um modo de produção.
Ainda que os dois sistemas que mencionamos acima, o escravagista e o feudal, nos
pareçam hoje historicamente distantes, precisamos lembrar que a escravidão no Brasil
existiu até o fim do século 19, nos Estados Unidos até a Guerra de Secessão, que a
exploração das populações colonizadas era geral e durou até meados do século passado,
e que o sistema de apartheid durou até ontem na África do Sul e perdura ainda na
Palestina. Nem os Estados Unidos nem o Brasil lograram ainda absorver e ultrapassar a
opressão e as desigualdades herdadas do passado escravagista, a África enfrenta
penosamente a reconstrução necessária. O passado não é assim tão distante. É um rabo
longo que demora a passar. Em muitas nações erigidas em países, ainda é
estruturalmente decisivo.
O modo de produção capitalista nos aparece com outro nível de legitimidade. Na base
da transformação esteve o avanço científico, a revolução energética, o aumento da
produtividade e, portanto, a possibilidade de gerar um ciclo sustentado de
enriquecimento social. O Liberté, Egalité, Fraternité da revolução francesa ecoou pelo
mundo. Com o Iluminismo, a busca dos valores na sociedade passara a abrir frestas no
obscurantismo, reduzira-se o número de mulheres queimadas como bruxas (“não
permitirás que as bruxas vivam” instrui a bíblia, Exodus 22:18), geraram-se a visão de
enriquecimento como fruto legítimo do esforço, e o conceito do mérito como virtude. A
narrativa evoluiu. O trabalhador passou a ter a liberdade de pedir emprego e de ser
explorado. A revolução industrial trouxe outro nível de produtividade, aumentou a
prosperidade, mas não para todos. Um avanço, sem dúvida, e o mecanismo de
exploração evolui, mas se mantém, as narrativas mudam, e a repressão se moderniza.
Em particular, a exploração e violência mais direta se deslocam para o Sul.
No estudo A Formação do Terceiro Mundo apresentamos a dimensão global que o
capitalismo adquire, em que a industrialização da Inglaterra, sistema bem capitalista, se
apoiou na reprodução da escravidão nos Estados Unidos e outros países que lhe
forneciam matéria prima. O capitalismo do império britânico não teve reticências em
usar de escravidão, trabalho forçado e massacres em diversas partes do mundo, e hoje
assistimos impressionados à Inglaterra se desculpando pelo que fez na Índia, no Quênia
e tantos outros países, à França pedindo desculpas a países africanos pelas violências do
passado, os Estados Unidos pelo que fizeram no Irã. Daqui a alguns anos irão se
desculpar pelo que fizeram no Afeganistão. Lembremos que a Bélgica, no Congo, foi
responsável por milhões de mortes, processo documentado no estudo O Fantasma do
Rei Leopoldo. A prosperidade dos países hoje ricos não se deve apenas à produtividade
e racionalidade do sistema capitalista. A fraternité tem claros limites. Muitos até hoje
não se dão conta dos subsistemas primitivos em que se apoiou o chamado liberalismo
capitalista. O Brasil contribuiu muito.
Em termos gerais, o sistema capitalista dos países ricos se baseou em articulações com
sistemas pré-capitalistas nos países colonizados ou simplesmente dependentes. Samir
Amin, em livro clássico, chamou corretamente este sistema de ‘acumulação do capital
em escala mundial’. Essa dimensão da acumulação permitiu uma apropriação do
excedente, por meio da exploração dos trabalhadores e apropriação da mais valia nos
países centrais, mas também por meio da exploração colonial direta ou a troca desigual,
com a narrativa de trazer a civilização aos povos primitivos, e evidentemente com a
força militar. A religião, aqui também, frequentemente serviu de bálsamo civilizatório.
Isso foi ontem, meus anos de universidade eram contemporâneos com as lutas de
libertação nas colônias. Hoje temos países independentes, que podem decidir livremente
por quem serão explorados, se por sistemas de endividamento ou de troca desigual, ou
ambos. A exploração muda de forma, as narrativas atualizam o discurso, o controle
militar se torna mais sofisticado. Mas estamos sempre servindo elites.
O equilíbrio precário: produzir para quem?
Essa pequena retrospectiva nos ajuda a lembrar a que ponto a barbárie que hoje nos
chocaria – a escravidão, a servidão, o colonialismo, o apartheid – ainda é próxima, e a
que ponto sobrevive e penetra no nosso cotidiano. Basta olhar a cor das pessoas nas
nossas favelas ou nos bairros das periferias urbanas e nas prisões nos Estados Unidos.
Também devemos atentar para o impacto que têm as diversas formas de organização
dos países em desenvolvimento, não só porque seguem em grande parte especializados
em produtos primários, o que trava a modernização, mas porque quem exporta precisa
da mão de obra apenas para o trabalho, não para o consumo: o produto vai para o
mercado externo, e o consumo das elites é em boa parte garantido por produtos
importados. Para quem produz para o mercado externo, e importa os produtos acabados,
não é indispensável o poder de consumo dos seus trabalhadores. Em pleno século XXI
no Brasil, a reprimarização gera o mesmo desprezo pela elevação capacidade de
consumo da população.
A miséria impressionante dos trabalhadores, coisa que vemos até hoje no que
chamamos de países em desenvolvimento, mesmo com tecnologias as mais avançadas,
resulta dessa forma de acumulação de capital, em que dinamizar a capacidade de
compra da base da sociedade não é essencial, pois o ciclo de acumulação se fecha em
boa parte no exterior. Ao mesmo tempo, o avanço tecnológico torna a necessidade de
contratar mão de obra menos essencial, pelo processo de substituição. Assim que há
modernização tecnológica, mas com pouca transformação das relações sociais,
perpetuando a desigualdade e a pobreza. É a herança social da relação Norte-Sul. O
leitor interessado nesse mecanismo poderá consultar o meu Formação do Capitalismo
no Brasil. A ideia essencial, que tive oportunidade de discutir tanto com Samir Amin
como com Caio Prado Júnior, é que o ciclo de reprodução do capital dos países pobres
se fecha no exterior, a necessidade de mão de obra se reduz, e a troca desigual e o
endividamento asseguram o resto. A modernidade tecnológica convive sem problemas
com exploração em grande medida pré-histórica. Nos próprios países industrializados,
no chamado Ocidente que representa cerca de 15% da população mundial, a tensão entre
aumentar a exploração e assegurar a capacidade de compra da população se colocou com força.
Foi preciso o mundo capitalista dominante enfrentar a crise de 1929 para que se tomasse
consciência de que não basta produzir, é preciso assegurar o consumo, para fechar o ciclo
de acumulação de capital. As exportações para os países mais pobres, em troca de
matérias primas, não seriam suficientes, e o New Deal de Roosevelt tem na sua essência
a geração, por meio do Estado, de maior capacidade de compra por parte da população em geral.
Sherwood, que escrevia os discursos do Roosevelt, detalhou o programa em brilhante livro,
Roosevelt and Hopkins. Hopkins era o importante na execução do New Deal.
A Guerra de Secessão, nos anos 1860, além da libertação dos escravos, tinha rompido o
ciclo colonial do algodão trocado por importações britânicas, interiorizando o ciclo de
reprodução de capital, nas novas relações entre o nordeste industrial e o sul produtor de
matéria prima. Mas foi o New Deal que gerou uma incorporação ampla da população
americana na prosperidade. O consumo na base da sociedade, financiado inicialmente
pelo Estado, gerou demanda, logo redução dos estoques acumulados nas empresas, e em
seguida a retomada da produção, logo aumento do emprego, gerando ainda mais
demanda, permitindo um ciclo de acumulação do capital desta vez de forma equilibrada.
Eric Hobsbawm, no livro A era dos extremos, detalha essa transformação econômica e
cultural.
Entre os aportes de Keynes que demonstrou a necessidade de se assegurar a demanda
agregada, o impacto do sucesso do New Deal, e o bom senso de um Henry Ford
afirmando que bons salários eram necessários para que os seus carros fossem
comprados, abriu-se uma nova visão, a do Welfare State, Estado de Bem-Estar. Não se
podia mais dizer que os trabalhadores não teriam a ganhar com o capitalismo. Por uma
vez, e em particular durante os 30 anos “gloriosos” do pós-guerra, tivemos uma
dinâmica impressionante nos países ricos, com o equilíbrio da capacidade de produção e
da demanda social, da dinâmica empresarial e do investimento público. Em termos
políticos, gerou-se a socialdemocracia.
Lembremos, uma vez mais, que para uma economia exportadora de bens primários que
importa bens industrializados, o mercado está no exterior, e as tecnologias substituem
empregos, assim que expandir os empregos e aumentar os salários dos trabalhadores
não seriam prioridades. Angola exporta petróleo e importa bens de consumo para as
elites. Na América Latina, quando se tenta democratizar a economia, voltam ditaduras.
Podemos ter democracia, conquanto não a usemos: o resultado é democracia política
formal, o voto, sem a democracia econômica. A pandemia apenas veio escancarar a
fratura econômica, política e social. No Brasil, hoje um dos maiores exportadores de
produtos agrícolas do mundo, temos 19 de milhões de pessoas que passam fome, e 116
milhões em situação de insegurança alimentar, em pleno 2022. Com um andar acima em
termos de tecnologia e de volumes de extração, chegamos a um novo tipo de tecnocolonialismo.
Com algumas exceções como evidentemente a China, e também alguns
tigres asiáticos, a fratura planetária do capitalismo se tecnifica, mas se aprofunda.
Estado, empresa e sociedade civil
Na realidade, como nos lembra Mariana Mazzucato no seu excelente O Estado
Empreendedor, a dinâmica dos anos gloriosos do pós-guerra foi fruto da forte
participação das iniciativas públicas. Por um lado, porque o Estado assegurou um
sistema tributário progressivo que permitia manter um razoável equilíbrio social, por
meio de um conjunto de políticas redistributivas. Por outro lado, o Estado assumiu uma
série de políticas como executor, em particular expandindo o acesso gratuito universal
aos serviços de saúde, à educação, à segurança, às infraestruturas básicas e outros
setores, que tanto melhoraram o bem-estar das famílias com o acesso aos bens e
serviços de consumo coletivo, como melhoraram a produtividade da economia ao
expandir infraestruturas como transporte, energia, telecomunicações, água e saneamento
básico, investimentos esses que facilitam muito o funcionamento das próprias empresas
privadas. Os sistemas públicos de pesquisa, que podem se dar ao luxo de desenvolver a
chamada pesquisa fundamental, nos trouxeram as principais inovações científicas, desde
o DNA até os microprocessadores, a informática, a internet e tantas outras
transformações tecnológicas. Até a telinha do celular que podemos manipular com um
dedo resulta de pesquisa em instituições públicas, ainda que para nós apareça como
Samsung ou Apple. O Estado não foi o problema, foi parte muito importante da solução.
As organizações da sociedade civil, tanto sindicatos como inúmeras organizações nãogovernamentais,
complementaram o equilíbrio do conjunto, o que poderíamos chamar
de arquitetura social, processo decisório equilibrado pela convergência organizada dos
diferentes interesses. Essa dimensão muito subestimada do equilíbrio político geral é
essencial. Setores que se agigantaram na sociedade, como saúde, educação, segurança e
outras políticas sociais não se colocam nas prateleiras de supermercados, são serviços
capilares que têm de chegar a cada criança, a cada pessoa em cada rua, de maneira
diferenciada e personalizada, exigindo gestão descentralizada e participativa. A
sociedade organizada na base é essencial para o sistema funcionar. O sueco médio
participa de 4 organizações não governamentais, acompanha a escola do bairro, as
políticas ambientais, o orçamento da cidade. Kroeber, no seu excelente China’s
Economy, constata que a China é ainda mais descentralizada do que a Suécia.
Democracia resumida ao voto é uma construção frágil, quando não um engodo.
Este modelo de acumulação de capital, com um razoável equilíbrio do Estado, das
empresas e da sociedade civil, em que pesem as desigualdades e em particular os
dramas dos países em desenvolvimento, representou uma modelo de acumulação de
capital dinâmico e que ainda povoa o nosso imaginário quando falamos de capitalismo,
do modo de produção capitalista. Mas o capitalismo que hoje predomina mudou, e não
dá muita importância às nossas saudades. O essencial, ao examinarmos as
transformações em curso, é que o capitalismo da fase socialdemocrata explorava os
trabalhadores, mas para explorar um trabalhador precisaria pelo menos assegurar-lhe
um emprego: é o condicionamento e limitação da mais valia extraída por baixos
salários. Por outro lado, para ter para quem vender os produtos, cujo volume se
expandia com as novas tecnologias, precisaria limitar a exploração, assegurar salários
mais decentes e políticas sociais, e gerar empregos.
Nesse modelo de acumulação, portanto, a apropriação do excedente social pelas elites
encontrava limites, tanto pela forma de geração de mais valia, baseada na exploração
salarial, como pela necessidade de manter uma elevada demanda agregada, para ter para
quem vender. Seria realista também lembrar que a presença de um urso poderoso no
Leste tendia a tornar os capitalistas mais flexíveis em termos políticos. Tudo isso iria
mudar, levando a um deslocamento profundo no cerne do modo capitalista de produção,
que é o mecanismo de acumulação do capital, a forma de geração e de apropriação do
excedente social.
Os “trinta anos gloriosos” do pós-guerra foram um sucesso, limitado aos hoje países
desenvolvidos, e duraram, precisamente, apenas 30 anos. Os capitalistas se apropriaram
da gloria do sucesso, proclamando o livre-mercado, a propriedade privada e a livreiniciativa
como solução definitiva para a humanidade. There is No Alternative (TINA),
proclamou Margareth Thatcher. O Estado não é a solução, o Estado é o problema, ecoou
Ronald Reagan. Milton Friedman daria um lustro acadêmico com a profundidade do
The Business of Business is Business, os especuladores de Wall Street passaram a
repetir em todo fechamento da Bolsa o seu Greed is Good. Os economistas montaram
inúmeros modelos, baseados na simplificação de que não há sociedade, e sim
indivíduos, e de que os indivíduos podem ser simplificados como maximizadores de
vantagens individuais, tornando-se previsíveis. A economia política virou “ciência
econômica”. Nascia o neoliberalismo. Robert Reich resume: “A economia migrou de
produzir coisas para produzir instrumentos financeiros. Empreendedores de produtos
foram substituídos por empreendedores financeiros. ” O capitalismo hoje navega na
lembrança de um passado que funcionou, mas é passado, legitimidade emprestada.
O capitalismo financeiro
A fase do capitalismo razoavelmente equilibrado, nos países ricos, tanto com o New
Deal dos Estados Unidos desde os anos 1930, como de maneira mais generalizada no
pós-guerra, caracterizando o Estado de bem-estar, encerra-se praticamente no final dos
anos 1970, com a evolução muito acelerada para o hoje chamado neoliberalismo. Aqui
nos interessa a mudança no cerne do sistema, que é o mecanismo de apropriação do
excedente social. Na fase anterior, o capitalista, para enriquecer, precisava pelo menos
produzir e gerar empregos, e inclusive pagar impostos, o que enriquecia a sociedade. Na
fase que se inaugura no final dos anos 1970, o capitalista descobre que os mecanismos
financeiros podem lhe garantir enriquecimento com muito menos esforço, e sem tantos
constrangimentos. Os últimos quarenta anos do capitalismo se caracterizam por um
aumento radical da desigualdade, uma explosão de fortunas no topo da pirâmide social,
e um ritmo muito fraco de crescimento, apesar dos impressionantes avanços
tecnológicos. O contraste destas mudanças estruturais é significativo, pois os avanços
tecnológicos, possibilitando o aumento da produtividade, deveriam permitir tanto a
aceleração do crescimento como o aumento geral da prosperidade.
O gráfico acima apresenta a evolução do acesso à riqueza nos Estados Unidos. Os anos
80, como sabemos, foram considerados como “a década perdida”, mas o capitalismo
dominante estava se orientando para novas formas de acumulação, centradas no capital
financeiro. Em tom escuro, vemos a acumulação extraordinária de riqueza pelos 10%
mais ricos, no tom mais claro a evolução dos 50% a 90% que constituem
aproximadamente a classe média, e a linha milimétrica e estagnante na base do gráfico
mostra a paralisia econômica dos 50% mais pobres da população. São 30 anos de
acumulação radicalmente desigual, contrastando com a fase do pós-guerra. Não é
misterioso que a base da sociedade norte-americana, que nas últimas décadas, com
democratas ou republicanos, se viu excluída do processo, tivesse aderido com tanta
força à política do ódio, da anti-política.
A pandemia escancarou o processo, na medida em que o contraste entre a paralisia das
economias e o crescimento acelerado das fortunas tornou óbvio que o modelo de
acumulação se tornara disfuncional. Mas a transformação se dá desde os anos 1980.
Thomas Piketty traz os dados da World Inequality Database (WID): “Os tempos têm
sido particularmente acelerados para os que estão mesmo no topo nos Estados Unidos,
com a renda anual explodindo em 205% desde 1980 para o 1% superior, e em 636%
para o 0,001% superior.” 6 São dados absolutamente explosivos, sem relação com o
ritmo de expansão da produção de bens e serviços, de apenas alguns pontos percentuais.
Trata-se de um enriquecimento em ritmo muito mais elevado do que o que permitia a
exploração do trabalhador, no quadro da tradicional mais-valia. Piketty deixa isso claro,
no mesmo texto: “A importância crescente da renda derivada do capital – e a crescente
concentração de riqueza – têm sido vetores chave da desigualdade. Os ricos estão
ficando mais velhos, e uma parte crescente da sua renda provém da propriedade de
capital passivo em vez de trabalho ativo.”
Importante aqui é que Piketty se refere à “renda que provém da propriedade de capital
passivo e não do trabalho ativo”, o que é profundamente diferente de lucro que provém
da reprodução ampliada do capital, de empresas produtoras de bens e serviços, que
geram valor superior aos seus custos, em particular explorando a mão de obra. Aqui, se
trata de “renda derivada de capital passivo”, com o ‘capital’ entendido como recurso
financeiro aplicado em produtos financeiros, rendendo juros e dividendos sem o aporte
produtivo correspondente. No ciclo de reprodução de capital que conhecemos, dinheiro
que gera processos produtivos, que por sua vez geram mais dinheiro, no clássico D – P
– D’ de Marx, a expansão produtiva tornou-se muito menos necessária para essa classe
de capitalistas. David Harvey escreve com razão que se trata de patrimônio, não de
capital, na medida em que não são recursos que giram e se ampliam no processo de
acumulação de capital. ‘Capital passivo” não é capital, mais bem ‘capital fictício’ como
o chamava Marx. É o próprio processo de acumulação de capital, central no conceito de
capitalismo, que se desloca.
Só o crescimento exponencial de enriquecimento por mecanismos financeiros poderia
assegurar este nível de enriquecimento no topo, sem base produtiva correspondente. O
Inequality.org mostra, por exemplo, que em 2020 a riqueza acumulada da metade mais
pobre da população americana era de US$1,1 trilhão, enquanto 719 bilionários detinham
US$4,56, mais de quatro vezes mais. São 719 pessoas. O número de bilionários no
mundo, em 2020, pulou de 660 para 2.750. Os 20 indivíduos mais ricos no mundo
detêm mais riqueza que toda a metade inferior da humanidade. Lembremos que o
crescimento anual efetivo da produção de bens e serviços no mundo é da ordem de
2,5%. Se tirarmos a China é menos ainda. A força do aporte de Thomas Piketty, no livro
O capital no século XXI, reside na demonstração de que quando as oligarquias, por
meio de processos financeiros, enriquecem em ritmo incomparavelmente superior ao
crescimento da economia real, se trata de uma extração de riqueza que reduz as
capacidades produtivas.
A apropriação do excedente social por oligarquias improdutivas, como vimos, existiu
em diversas épocas e com diferentes formas de organização social, mas volta hoje com
uma escala e um ritmo de enriquecimento novos. Não é nova a exploração da sociedade
por improdutivos, mas sim o fato do processo ter atingido dimensões que transformam o
conjunto da sociedade. Quando empresários, que poderiam investir na produção,
constatam que é mais lucrativo investir em produtos financeiros, ou lucrar com mais
dividendos sobre ações que eles mesmos recompram, é a base mesma da acumulação de
riqueza que se desloca. Não mais o capitalismo de fortunas merecidas, na medida em
que geravam mais produtos e crescimento econômico: trata-se de rentismo.
Oren Cass, diretor executivo do thinktank conservador American Compass, se refere às
empresas que adotam o sistema como “Eroders”, que geram uma ‘erosão’ do próprio
sistema produtivo. “Um eroder é um tipo estranho de empresa que parece consumir os
seus próprios órgãos para o benefício de curto prazo dos seus acionistas. Ainda que nem
todas as empresas entrem nessa categoria, a grande maioria o faz, representando 90% da
capitalização de mercado do último meio-século.” Essa erosão, segundo Cass,
“representa uma grave ameaça à prosperidade futura da América.” Não é só no Brasil
que ocorre a desindustrialização.
“O problema, escreve Oren Cass, aparece quando o setor financeiro deixa de servir a
economia real e ao invés disso a economia real passa a servir o setor financeiro...Os
ativos da economia real tornam-se apenas o meio que o setor financeiro usa para
desenvolver uma variedade de atividades não-investidoras (non-investment activities)
para o seu próprio lucro...Empresas que não investem em si mesmas estão travando a
sua própria produtividade, o que implica em salários mais baixos para os seus
trabalhadores. Pagamentos massivos para os acionistas beneficiam essencialmente
(overwhelmingly) os ricos, que são donos da maior parte do dinheiro no mercado de
ações. ”
A visão de eroder, do capitalista que drena a própria capacidade produtiva da empresa,
se aproxima muito do conceito de parasita que mata o próprio hospedeiro, o killing the
host, de Michael Hudson: “Essas dinâmicas são diferentes das que regem o capitalismo
industrial, e na realidade solapam a economia industrial ao desviar recursos dela para
pagar ao setor financeiro e aos seus clientes rentistas.”10 No Brasil, o exemplo da
Samarco, que preferiu privilegiar o pagamento de dividendos aos acionistas e bônus aos
executivos do que melhorar a barragem, é neste sentido muito claro. Como a
remuneração dos executivos é diretamente ligada aos dividendos repassados aos
acionistas, que são do Brasil, mas também de qualquer parte do mundo, nos chamados
“mercados”, gera-se uma solidariedade entre os dois níveis, acionistas e executivos, no
sentido de maximizar a dinâmica extrativa. O resultado é o prejuízo da própria empresa,
na sua capacidade produtiva, e aumento de riqueza financeira, que no caso deixa de ser
capital, e se torna patrimônio. O rentista moderno gosta de se qualificar de capitalista,
mas é mais próximo do Mercador de Veneza, do usurário financeiro, do que do capitão
de indústria do século passado.
No gráfico acima, vemos que enquanto nos anos 1970 a remuneração dos executivos
americanos era 19,9 vezes o salário médio dos empregados, chega a ser 278,1 vezes
superior no período mais recente.11 A convergência de interesses entre acionistas que
recebem dividendos extorsivos, e os executivos das empresas, leva a uma explosão dos
níveis de remuneração dos dirigentes empresariais, às custas dos trabalhadores, mas
também às custas da capacidade de investimento produtivo das próprias empresas: é a
base da aliança entre os executivos das empresas produtivas – alguém tem de produzir –
e o universo financeiro de gestão de ativos. A mudança da orientação do processo
decisório nas empresas produtivas é essencial.
Marjorie Kelly e Ted Howard chamam este sistema de economia extrativa: “A nossa
economia é ‘do 1%, pelo 1% e para o 1%’ como o apresentou Joseph Stiglitz. No seu
centro está o que nós, como coautores, chamamos de ‘viés de capital’ (capital bias), um
favoritismo relativamente aos donos de finanças e de riqueza que penetra invisivelmente
por todo o sistema. Podemos chamá-lo de economia extrativa (extractive economy),
pois está desenhado para assegurar que a elite financeira possa extrair o máximo de
ganhos para si, em qualquer parte do globo, sem atenção para o prejuízo causado para
trabalhadores, comunidades, e o meio ambiente.” Não são investidores no sentido
tradicional, produtivo, são “speculative investors” nos termos dos autores, “que detêm
ações por minutos e assumem direitos de proprietários”.
Michael Hudson foca precisamente esta dimensão de travamento da produção e em
particular da indústria: “Marx e muitos dos reformadores menos radicais que lhe foram
contemporâneos viam o papel histórico do capitalismo industrial como sendo o de
remover a herança do feudalismo – os latifundiários, banqueiros e monopolistas que
extraíam renda econômica sem produzir valor real. Mas aquele movimento de reforma
fracassou. Hoje o setor das Finanças, Seguros e Imobiliário (Finance, Insurance, Real
Estate, FIRE) recuperou o controle do governo, criando economias neo-rentistas. O
objetivo deste capitalismo financeiro pós-industrial é o oposto daquele do capitalismo
industrial bem conhecido dos economistas do século XIX: Ele busca riqueza
primariamente através da extração de renta econômica, não da formação de capital
industrial. O favoritismo fiscal para o imobiliário, a privatização do petróleo e da
extração mineral, a banca e os monopólios de infraestrutura aumentam o custo de vida e
de fazer negócio. O trabalho está sendo explorado crescentemente pela dívida à banca,
dívida estudantil, dívida do cartão de crédito, ao passo que a habitação e outros preços
são inflacionados com o crédito, deixando menos rendimento para gastar em bens e
serviços quando economias sofrem deflação da dívida. ”
Apresentamos essa citação mais longa do Michael Hudson, porque explicita um ponto
essencial do presente estudo: uma coisa é constatar a desigualdade explosiva, o aumento
radical da apropriação de riqueza no topo da pirâmide. Outra, é quando constatamos que
o enriquecimento resulta apenas parcialmente de atividades produtivas, e constitui
essencialmente uma apropriação por mecanismos financeiros. Repetindo, ‘ele busca
riqueza primariamente através da extração de renta econômica, não da formação de
capital industrial.’ Trata-se precisamente de ‘renta’, que resulta do rentismo
improdutivo, conceito que não se encontra no Aurélio e que apenas começa a aparecer
na literatura econômica brasileira, mas a distinção é essencial: ‘renta’ aqui é equivalente
a ‘rent’ em inglês (e não income) ou ‘rente’ em francês (e não revenu). Um capitalismo
que reinveste apenas marginalmente na reprodução ampliada do capital, desviando o
essencial dos recursos para a ampliação de fortunas pessoas improdutivas, ainda é o
mesmo sistema?
O rentismo se torna dominante
Estamos acostumados a chamar de ‘capital’ todo valor acumulado, incluindo casas,
fábricas, ações, e diversos tipos de papeis financeiros. Mas o conceito de capitalismo
está baseado na sua inserção no processo de reprodução de capital, como no caso de um
fabricante de sapatos que investe o seu capital no ciclo produtivo, gerando empregos,
produtos e impostos: trata-se aqui precisamente de ‘acumulação de capital’. A
reprodução ampliada do capital gera enriquecimento social, ainda que gere também
exploração dos trabalhadores. Ter contas gordas, ações, casas e iates significa ter
patrimônio, riqueza (wealth) mas não capital. Riqueza tinham da mesma maneira os
aristocratas franceses, extraída de produtores reais, mas essa riqueza e os castelos não
eram capital inserido no ciclo de reprodução de capital. Constituíam um dreno, como
bem compreendiam os revolucionários franceses de 1789.
Joseph Stiglitz se refere à unearned income, que pode se traduzir por renda nãomerecida,
e que constitui uma busca de renta, rent-seeking: “Prática de obter riqueza
não por meio de atividade economicamente válida, mas extraindo-a de outros,
frequentemente por meio de exploração. Os exemplos incluem o monopólio que cobra
em excesso pelos seus produtos (rendimentos de monopólio) ou empresas farmacêuticas
que conseguem que o Congresso passe uma lei que permite que cobrem preços muito
altos, bem como fornecer menos bens, serviços e inovação efetiva ao mercado. ”
Trata-se de rendimentos sem a contrapartida produtiva, e não há como chamar isso de
capitalismo. Envolve exploração sem dúvida, mas não é o mesmo que uma pessoa
tomar o risco de investir numa indústria para produzir, ampliando o capital próprio, mas
também a riqueza social.
Marx trata amplamente desta apropriação que esteriliza o capital, por exemplo quando
trata da usura e do capital fictício. Nessa análise, o que o capitalista produtor transfere
para o banco, é apresentado como uma repartição da mais-valia extraída do trabalhador.
O capitalista produtivo tomava crédito, gerando lucro para o banco, mas o próprio
crédito permitia os investimentos produtivos. Era o banco com função de fomento. A
mudança é profunda quando o sistema de intermediação financeira se torna em grande
parte parasita do processo produtivo, gerando fortunas que retornam muito parcialmente
para o processo produtivo. Não é mais o sistema financeiro que ajuda a empresa a
desenvolver a atividade produtiva, mas o sistema produtivo a serviço da acumulação
financeira. Nada que Marx não tivesse detalhado em termos de mecanismo, com a
diferença que o sistema financeiro se tornou dominante. A dominância leva por sua vez
a uma inversão sistêmica: a produção é atividade fim, a intermediação financeira é
atividade meio, e quando os meios se apropriam dos fins, teremos muitos lucros
financeiros, e menos produtos.
Montecino e Epstein, no Roosevelt Institute, estimam que apenas 10% do que é extraído
do processo produtivo pelo sistema financeiro voltam para a economia real.
Mariana Mazzucato estima que possa chegar a 15%. Mas de toda forma, mantém-se a imagem
usada pelos americanos, the tail is waiving the dog, o rabo está abanando o cachorro. O
essencial do excedente produzido pela sociedade vai para não-produtores, e o modo de
produção precisa ser definido em função do principal modo de enriquecimento das
elites, que é constituído hoje por um conjunto de mecanismos de extração de renta, não
por acumulação produtiva de capital. A acumulação de capital pode hoje ser encontrada
de maneira muito mais clara na China, inclusive permitindo um ritmo impressionante de
desenvolvimento, do que no Ocidente ‘capitalista’. A China usa um sistema misto, mas
com o sistema financeiro canalizado para fomentar atividades produtivas.
Ellen Brown traz de maneira muito clara a mudança sistêmica, com a América passando
do “capitalismo de papai-mamãe” (mom-and-pop capitalism) para o que chamou de
techno-feudalismo: “Esses faraós dos últimos dias, os donos do planeta, os 5% mais
ricos – fazem com que o resto de nós pague todo dia pelo direito de viver no planeta
deles. E à medida que os fazemos mais ricos, eles compram ainda mais o planeta para
eles, e usam sua riqueza e poder para brigar entre eles por mais riqueza – apesar de,
naturalmente, sermos nós que temos de lutar e morrer na guerra deles. ”
O rentismo está no centro do palco, temos mais do que nunca ‘elites do atraso’, como as
chamou Jessé Souza, e não surpreende que o sistema atual tenha sido chamado de
techno-feudalismo por Ellen Brown, de neo-feudalismo por Joel Kotkin, de capitalismo
parasitário por Zygmunt Bauman, que leve ao grito indignado de The Triumph of
Injustice de Saez e Zucman, e tantas qualificações que se multiplicam. O essencial é
compreender que é o núcleo duro do conceito de capitalismo que se deslocou, mudando
o próprio processo de acumulação de capital. Não à toa o mundo estagna quando temos
tanta tecnologia e tanta riqueza – esta última em grande parte improdutiva. Capital
financeiro, capital extrativo, capital passivo, capital parasitário, tantas qualificações
encontramos, na busca de redefinir o sistema. Na realidade o capital subsiste, sem
dúvida, nas empresas produtivas, mas o conjunto do sistema, a lógica do
reinvestimento, obedece aos interesses de rentistas improdutivos, e os que se referem a
um novo feudalismo estão mais próximos da realidade. Há muita proximidade entre os
bailes de Versalhes e as reuniões de Viena de séculos atrás, e o atual glamour de Davos.
Não é misterioso, em termos de mecanismo, e na fase da pandemia, termos tanto
enriquecimento no topo da pirâmide, e Bolsas tão pujantes, quando as economias estão
paralisadas ou em queda. O divórcio entre o crescimento das fortunas e a estagnação da
produção mostra que um já não depende do outro. Otávio Ianni escrevia que “a política
mudou de lugar”. O capital também mudou de lugar. É o sistema que se desloca. Na era
das fábricas e do operariado no centro do processo econômico, podia-se batalhar pela
“socialização dos meios de produção”. Hoje precisamos resgatar o controle do rentismo
improdutivo: finanças, tecnologias, informação, comunicação. O eixo de luta se desloca.
Muitos lamentam com razão a desindustrialização do Brasil. Mas o essencial está no
sistema de financeirização e de intermediação de commodities que gera essa
desindustrialização ao mesmo tempo que fomenta a reprimarização. Mariana Mazzucato
e Robert Skidelsky deixam isso claro: “Deixadas por conta própria, as economias de
mercado tendem a favorecer atividades de curto prazo ou de rentismo — daí as
tendências radicais de financeirização e desindustrialização testemunhadas nas últimas
quatro décadas. ”
O capital vai para onde rende mais, e não é mais na produção.
Um editorial do Guardian aponta para a profundidade da transformação: “Hyman
Minsky foi um pioneiro na compreensão do controle da finança sobre a economia dos
Estados Unidos – a das consequências para a sociedade. Nos anos 1980, ele predisse o
surgimento do “capitalismo de gestão do dinheiro” e anteviu que os investidores
institucionais se tornariam mestres (masters) do universo. Hoje, estamos em um mundo
de “capitalismo gestor da máquina do dinheiro”, em que os algoritmos controlam a
compra e venda de títulos. O pioneiro nesta abordagem é a empresa americana
BlackRock, que é o maior gestor mundial de ativos e no ano passado se tornou também
da Grã-Bretanha. Os humanos ainda definem as regras que os computadores seguem.
Mas a inteligência artificial está diluindo a distinção. Os computadores gerem os
portfólios de investimento oferecendo fundos negociados em bolsas que
automaticamente seguem os índices de ações e títulos. Isso teve tanto sucesso que os
três grandes – as firmas americanas BlackRock, Vanguard e State Street – atualmente
gerem US$19 trilhões em ativos, aproximadamente um décimo dos títulos contados no
mundo.”
A dimensão aqui é importante: os ativos dos três grupos acima, pouco conhecidos do
público em geral, BlackRock, Vanguard e State Street, são equivalentes ao PIB dos
Estados Unidos (21,5 trilhões), e representam cerca de quatro vezes o orçamento do
governo federal americano. Só a BlackRock tem ativos que em 2022 ultrapassaram 10
trilhões de dólares, mais de cinco vezes o PIB do Brasil. Nada produzem, intermedeiam.
São atravessadores, cobradores de pedágio sobre atividades produtivas. O comércio
mundial de commodities, por exemplo, está essencialmente nas mãos desses grupos.
Constituem os novos vetores de apropriação do excedente social. Ellen Brown, no texto
citado acima, ao buscar uma dimensão propositiva, foca essencialmente a
intermediação: “A reforma do sistema bancário é também outra importante ferramenta.
Bancos operando como uma utilidade pública poderiam alocar crédito para atividades
produtivas servindo os interesses públicos. Outras possibilidades incluem a aplicação da
legislação antimonopólio e a reforma da lei de patentes.” Rentas financeiras, rentas de
monopólio, pedágios sobre o conhecimento, pedágios sobre a comunicação, vigilância
social individualizada por meio de algoritmos, esses são alguns dos eixos dominantes de
apropriação do excedente social, que travam a capacidade de investimento produtivo.20
O sistema baseado na exploração dos escravos constituía um modo de produção
escravagista, o sistema baseado na exploração dos servos no quadro de feudos foi um
modo de produção feudal, o sistema baseado na exploração do operário em fábricas foi
um sistema capitalista. O sistema que hoje enfrentamos, baseado na extração de renta
através do controle das empresas produtivas (absentee ownership, regime de
proprietários ausentes), da informação e do dinheiro, pode ser considerado um modo de
produção rentista, fruto da revolução digital. Isso é muito mais do que ‘indústria 4.0’. O
capital improdutivo, que se insere apenas marginalmente no processo de produção para
explorá-lo, não constitui o bom velho capitalismo que tanto denunciamos, mas que pelo
menos produzia, gerava empregos e pagava impostos.
***
Um sistema baseado na extração do excedente social por meio das diversas formas de
rentismo, em que a exploração do trabalhador pela mais valia deixa de ser dominante,
tampouco se interessa por criar emprego. Os avanços tecnológicos contribuem sem
dúvida a gerar desemprego pela simples dinâmica de substituição da força de trabalho,
mas o processo é bem mais amplo. No Brasil, com 214 milhões de habitantes, o
emprego formal privado se resume a 33 milhões de pessoas. Somando 11 milhões de
funcionários públicos, são 44 milhões, apenas 41% da força de trabalho de 106 milhões.
No conjunto estamos falando de uma massa de 60 milhões de adultos, em idade de
trabalho. A subutilização da força de trabalho, num país onde há tantas coisas por fazer,
é absolutamente chocante, mas se soma ao próprio processos de substituição
tecnológica. Voltaremos a esta questão mais adiante, pois se trata de um dos eixos
principais de resgate do desenvolvimento.
Na realidade, um sistema cuja principal forma de se apropriar do excedente social se dá
por meio de rentismo improdutivo, precisa cada vez menos de força de trabalho para ter
quem explorar. O vendedor de bugigangas na praia ou nas praças já anda com
“maquininha”, e paga o pedágio para os bancos em cada operação. O antigo
proletariado é hoje cada vez mais qualificado de ‘precariado’. O fato do dreno
financeiro ser feito em grande parte sem exigir aumento de produção e de emprego,
afeta diretamente a força de trabalho. A tendência é mundial. Na África do Norte, por
exemplo, o setor informal supera os 70% da população ativa.
O novo sistema é incomparavelmente mais destrutivo, gerador de desigualdade em
escala qualitativamente superior, e irresponsável quanto aos impactos econômicos,
sociais e ambientais. No essencial, perdeu a sua função de reprodução e expansão do
capital produtivo, do que Marx chamou de reprodução ampliada do capital. As fábricas
não desaparecem com a revolução digital em curso, como a agricultura não desapareceu
com a revolução industrial. Mas o eixo estruturante do sistema, a forma de apropriação
do excedente social, se desloca. Expandir a produção, os empregos e a correspondente
capacidade de compra da população, para poder escoar os produtos, passa a
desempenhar um papel secundário. Veremos a seguir como essas transformações se
concretizam em vários setores da economia.
II – MECANISMOS DE EXPLORAÇÃO FINANCEIRA
Abaixo traçamos em breves linhas os diversos mecanismos que permitem o que Gar
Alperovitz e Lew Daly chamaram de “apropriação indébita”. São dinâmicas já bem
rodadas nos últimos 40 anos de neoliberalismo, mas que se expandem e atualizam
constantemente, à medida que avançam as tecnologias de apropriação e gestão de ativos
financeiros, e que se fragilizam os sistemas públicos de regulação, que se reforçam as
grandes plataformas com algoritmos que permitem a exploração individualizada e
diferenciada
O endividamento generalizado
Quando o endividamento ultrapassa a capacidade de pagamento da dívida, seja por juros
elevados ou por volume da dívida – e os banqueiros conhecem perfeitamente a situação
do cliente, seja família, empresa ou Estado – gera-se um processo permanente de
transferência de recursos, o chamado serviço da dívida, que leva por exemplo a dívidas
estudantis que pessoas aposentadas ainda estão pagando: os formandos passarão a vida
repassando parte dos seus salários para banqueiros, iludidos que foram pela perspectiva
de grandes ganhos que lhes proporcionaria o diploma, com a propaganda muito ativa
dos bancos. No Brasil, em 2003 a dívida das famílias equivalia a 18% dos rendimentos,
em 2012 chegou a 45%, nível não excessivo em termos internacionais, mas pagando
juros estratosféricos. O financiamento da pequena e média empresa seguiu o mesmo
ritmo, levando ao estrangulamento financeiro. Ampla pesquisa de fins de 2016, sobre o
endividamento privado (famílias e pessoas jurídicas) apresentou o volume de recursos
extraídos da economia real pelos bancos: 1 trilhão de reais, em um ano, equivalentes na
época a 16% do PIB. Somando 6% de juros sobre a dívida pública, é um quinto do PIB
transformado em lucros financeiros improdutivos.
Em 18 de dezembro de 2016, o Estado de São Paulo trazia a manchete: “Crise do
crédito tira R$ 1 tri da economia e piora recessão”. Apresentamos esses dados com
análise detalhada no A Era do Capital Improdutivo, para o caso brasileiro, mas o
endividamento generalizado das famílias, das empresas e dos Estados é planetário, e
envolve tanto o endividamento interno como internacional. Grande parte da
humanidade trabalha para alimentar intermediários financeiros. E as pessoas se
esquecem que o dinheiro emprestado ou é da própria sociedade, ou é simplesmente
emitido, sob forma de sinais magnéticos – dinheiro hoje virtual – pelos próprios bancos,
que cobram juros sobre um dinheiro que não lhes custou nada. São atividades-meio,
custo líquido para a sociedade que só se justificaria se o aporte para a acumulação do
capital fosse maior do que a extração.
Uma pessoa emitir dinheiro constitui um crime, pois adquire um poder de compra sem
ter contribuído com produção. Os bancos hoje emitem dinheiro. O papel-dinheiro
impresso pelos governos hoje representa, como ordem de grandeza, 3% da liquidez. Os
97% constituem apenas anotações nos computadores, dinheiro virtual, emitido pelos
bancos. Quando um banco nos cobra caro por um dinheiro que não precisou pagar, os
acionistas passam a adquirir um poder de compra sem ter precisado contribuir com a
produção. Lembrando que o Lehman Brothers entrou em falência quando tinha emitido
27 vezes mais dinheiro, sob forma de empréstimos, do que tinha em caixa. O banco
faliu, bastou algumas empresas retirarem seu dinheiro para quebrar, mas os acionistas
embolsaram os dividendos. Com a crise de 2008, os bancos receberam trilhões como
resgate, dinheiro público, dinheiro que podia ter sido utilizado para infraestruturas e
políticas sociais.
A massa da população tem pouca escolha, em particular quando se privatizam as
políticas sociais. Segundo Eric Toussaint, “Bancos privados e outras instituições
privadas investiram muita energia no desenvolvimento de uma política de empréstimos
para pessoas comuns que buscam empréstimos porque as suas rendas são insuficientes
para pagar a educação superior ou os cuidados de saúde. Nos Estados Unidos, a dívida
estudantil chegou a US$1,7 trilhões, com US$165 bilhões de inadimplência sobre
empréstimos estudantis, quando grande parte das garantias são sujeitas a condições
abusivas. ”
Para se apropriar do excedente social, o banco não precisa gerar emprego, e cada vez
menos gerar crédito produtivo: empregados ou não, no Brasil 62 milhões de adultos
estão atolados em dívidas, dos quais 25% em bancarrota pessoal. Com a pandemia,
famílias e empresas em situação crítica se atolaram mais ainda, sem ter como escapar da
agiotagem. Os trabalhos de Varoufakis mostram como a extorsão funciona no nível
internacional, no caso da Grécia.
Extração de dividendos
A lógica aqui é próxima da lógica do endividamento. As pessoas que compram ações
consideram que estão financiando uma empresa, e com isso favorecendo as atividades
empresariais. Mas quando a remuneração das ações (os dividendos), está no limite do
excedente que a empresa gera, ela perde capacidade de reinvestimento. O mecanismo
permite entender por exemplo a dinâmica econômica do Brasil e de outros países, em
que a economia não cresce, mas a Bolsa está bombando, gerando mais rendimentos para
os acionistas. A tragédia de Mariana, em que a Samarco preferiu aumentar os
dividendos dos acionistas, e consequentemente os bônus dos executivos, em vez de
investir na segurança da barragem, é característica. A BP, depois do vazamento no
Golfo do México, para pagar as multas nos Estados Unidos, preferiu vender campos de
petróleo, descapitalizando a empresa, do que reduzir os dividendos dos acionistas. Os
exemplos não faltam.
Aplicação financeira não é investimento, no sentido de construir uma estrada ou uma
fábrica ou uma escola, atividades que geram aumento do capital acumulado da
sociedade. Trata-se, precisamente, de aplicação financeira, ainda que os bancos
qualifiquem de ‘investimento’ qualquer atividade especulativa. Da mesma forma, renta
gerada por habilidade em lidar com papéis financeiros não é a mesma coisa que lucro
sobre um processo produtivo que gera capital fixo, produto, emprego e impostos.
Marjorie Kelly, em livro de grande impacto publicado em 2003, deixa claro o novo
mecanismo: “No desenho do sistema do capitalismo aristocrático, os CEOs são
contratados por acionistas e dirigidos por conselhos para focar apenas um objetivo:
maximizar os retornos dos acionistas. Os executivos são pagos apenas quando atingiram
esse objetivo...Temos hoje indignação (outrage) quanto à falta de legitimidade dos
ganhos dos CEOs. Mas em nenhum lugar encontramos indignação quanto à falta de
legitimidade dos ganhos dos acionistas, pois se trata do sol em volta do qual o sistema
gira. Questioná-lo é questiona o direito divino do capital. ”
A autora explicita que esse tipo de apropriação de recursos equivale à apropriação
indébita dos senhores feudais: “Os detentores de ações se apropriam de uma riqueza
para a criação da qual pouco contribuíram, de forma parecida como os nobres
proclamavam privilégios para os quais não trabalharam...Em vez de capitalizar
empresas, o mercado de ações as descapitaliza. Os detentores de ações durante décadas
têm representado um imenso dreno da liquidez das corporações. Eles são a mais morta
da madeira morta. É até incorreto falar dos detentores de ações como investidores, pois
em verdade são extratores. Quando compramos ações não estamos contribuindo com
capital: estamos comprando o direito de extrair valor. ”
Lembremos que, como ordem de grandeza 85% das aplicações financeiras estão nas mãos dos 10% mais ricos.
É um pedágio generalizado sobre processos produtivos.
Monopólio de demanda: o poder das plataformas
O dinheiro, como vimos, é hoje representado por sinais magnéticos. O dinheiro virtual
permite apropriação de fragmentos de praticamente todas as atividades econômicas por
meio de pedágios financeiros. No caso dos cartões de crédito, no Brasil, onde
antigamente o dinheiro da compra saia do bolso do cliente diretamente para o caixa do
comerciante, hoje com o pagamento por cartão de crédito o banco drena cerca de 5% do
valor da compra, sem produzir nada. Na modalidade “débito”, o dreno é da ordem de
2,5%. Com dezenas de milhões de transações diárias com cartão, o volume se torna
muito elevado. O Dieese calcula que com essas e outras tarifas, sem contar os juros, os
bancos pagam uma vez e meia a sua folha de pagamentos. Em outra era tecnológica não
seria viável inserir pequenos drenos em tantas operações dispersas, mas com a moeda
digital é só colocar a instrução no computador para drenar pequenas quantias de dezenas
de milhões de pessoas. “Enter”. Essa micro-drenagem atinge a todos, sem gerar
atividade econômica ou empregos.
Uma drenagem semelhante é imposta às transferências internacionais para famílias.
Milhões de pessoas hoje trabalham nos Estados Unidos ou na Europa e fazem
regularmente remessas para os países de origem. Trata-se de pequenos montantes, feitos
por pessoas simples, e os intermediários cobram, como ordem de grandeza, 7% do valor
remetido, quando os custos, simples envio de sinais magnéticos no computador, se
contam em centavos por remessa. Trata-se de mais um pedágio que consiste apenas
numa instrução no computador.
A expansão da economia das plataformas, onde antes dominavam unidades
empresariais, generalizou a microdrenagem de maneira dramática. Inúmeros serviços
não são mais comprados, adquire-se o direito de acesso. Jeremy Rifkin escreveu um
excelente livro sobre essa transformação, A Era do Acesso. Pagamos mensalidades para
ter acesso a filmes no Netflix, recebemos inúmeras ofertas com propostas de
mensalidades baixas, inclusive alguns meses gratuitos no início. O fato é que esses
microdrenos se somam, cortar o vínculo é burocraticamente irritante, e aqui são
centenas de milhões pessoas que veem as suas contas no banco reduzidas, quer utilizem
os serviços ou não.
A BBC é paga, pelo preço do custo. Um britânico paga pelo serviço, que é público, e
tem boa programação sem publicidade, no que tem sido qualificado de “a melhor
televisão do mundo”. Nas TVs comerciais, a TV aberta se apresenta “sem custos”, mas
o pagamento é simplesmente indireto. A publicidade que interrompe os programas
representa custos para as empresas que promovem os seus produtos, custos que são
incorporados nos preços dos produtos que compramos. De toda forma o dinheiro sai do
nosso bolso, mas de forma indireta. E temos de enfrentar os intervalos publicitários,
pagos do nosso bolso.
O básico hoje, em termos de acesso aos serviços de comunicação, é o acesso à internet,
a uma linha de celular, e a canais de TV minimamente decentes. Os pacotes oferecidos
estão na mão de algumas empresas apenas, que cobram o que querem pois se trata de
serviços essenciais e porque constituem um oligopólio. Aqui também não é algo que
compramos, e sim uma mensalidade que passamos a pagar para ter “acesso”, para estar
conectado. Os custos são ridículos se comparados com os preços cobrados, simples
retransmissão de sinais. Não à toa o mexicano Carlos Slim tem uma fortuna na altura do
Bill Gates. É um intermediário da comunicação. No Brasil controla a Claro.
As maiores fortunas mundiais hoje não são mais baseadas em atividades produtivas,
mas de intermediação do dinheiro, e de intermediação da comunicação. O Facebook,
por exemplo, é gratuito na aparência. As fortunas que fluem para a empresa vêm da
publicidade, que é paga por empresas que as incluem nos custos de produção, da mesma
forma que no caso da TV aberta, e terminam saindo do nosso bolso. Aqui tampouco
temos opção, se trata de ‘monopólio de demanda’, ou seja, somos obrigados a utilizar o
que os outros utilizam, o que leva a uma situação em que a empresa lucra com bilhões
de pessoas que pagam os custos, incorporados nos produtos que compram. As
gigantescas fortunas que surgem da uberização da economia fazem parte desta
capacidade técnica de colocar drenos de tantas coisas pequenas que pagamos, dinheiro
que flui para as sedes mundiais dos grandes grupos, plataformas de pedágio. Estamos
falando aqui das maiores fortunas do mundo, no sistema que permite que fragmentos do
que ganha um simples entregador com a sua moto ou sua bicicleta seja aspirado para os
grandes grupos mundiais.
O fato é que em grande parte o capitalismo de pedágio não exige esforços por parte de
quem cobra, o dinheiro é deduzido da conta bancária, do salário, ou incorporado no
preço da compra, ou disfarçado como tarifas que nos parecem módicas, e o resultado
são fortunas monumentais que resultam de simples intermediação. Não é inevitável.
Lembremos que um serviço essencial e de uso diário generalizado é o WorldWideWeb,
o www que colocamos em qualquer comunicação, não gera nenhum custo. É
administrado por um consórcio mundial sem fins lucrativos, e é nessa rede sem custos
que navegam os serviços comerciais que drenam as nossas contas. Tim Berners-Lee,
criador do WWW, se recusou a cobrar tarifas de intermediação, dizendo que
simplesmente não faria sentido: a comunicação é de utilidade pública.
Privatizações e apropriação de recursos naturais
As fortunas modernas encontraram na narrativa de que o Estado mínimo é melhor, o
caminho para se apropriarem de riqueza sem precisar investir, herdando a baixo custo
um capital construído pelo setor público com os recursos públicos. É o caso em
particular da apropriação de extração mineral, produtos naturais que fazem parte da
nação, e que são exportados em bruto, rendendo imensas fortunas para os acionistas. O
Banco Mundial desde 1993 propõe contabilizar a extração de petróleo, por exemplo,
como descapitalização do país, e não como aumento do PIB.
O caso da Petrobrás constitui um exemplo. Das negociações que se desenrolaram na
primeira década do milênio, resultou uma legislação importante: o petróleo sendo da
nação, os lucros da sua venda deveriam ser canalizados para financiar o
desenvolvimento do pais, haveria ‘partilha’ e não entrega. Com a privatização, as
reservas servirão para alimentar dividendos de acionistas do Brasil e do resto do mundo,
resultando em rentismo improdutivo, e aparência de progresso ao aumentar o PIB.
A privatização da Eletrobrás segue no mesmo caminho. O Brasil possui uma base
importante de produção de energia hidroelétrica, e realizou, com os impostos da
população, infraestruturas de grande porte, tanto de geração como de transmissão e de
capacidade de gestão. “Estimativas calculam que o valor de mercado da Eletrobrás é de
pelo menos R$ 400 bilhões, podendo chegar a R$ 1 trilhão. E o governo quer entregar
por R$ 60 bilhões... A Eletrobrás tem R$ 15 bilhões em caixa e, graças a seus bons
indicadores financeiros, pode tranquilamente alavancar mais R$ 40 bilhões. Tem total
condições de realizar novos investimentos. Desde 2019, já distribuiu R$ 7,6 bilhões só
em dividendos.” Aqui também, há uma apropriação de bens públicos sem a
contrapartida correspondente, e recursos gerados com investimento público passarão a
alimentar com proporção radicalmente superior grupos financeiros não produtivos, que
poderão inclusive aumentar preços – prioridade dos acionistas – e encarecer a energia
elétrica tanto para famílias como para empresas. O preço do quilowatt seguirá o preço
do botijão de gás.
A tendência é planetária, gerando mais apropriação do excedente social e dos recursos
naturais por grupos financeiros improdutivos. George Monbiot apresenta essa dinâmica:
“Cortar o financiamento das repartições, eliminar as equipes e descartar os expertos que
as apoiavam, fechar programas de pesquisa, perseguir os funcionários públicos que
permanecem, o estado que odeia a si mesmo está destruindo o próprio aparato de
governo. Ao mesmo tempo, está destruindo as proteções públicas que nos protegem do
desastre...As forças que ameaçam destruir o nosso bem-estar são também as mesmas
por toda parte: essencialmente o poder de lobby dos grandes negócios e do grande
dinheiro, que veem a administração pública como um impedimento aos seus interesses
imediatos.”
Os investidores institucionais privados que adquiriram a empresa pública irão sem
dúvida explorar os trabalhadores, na linha da mais-valia tradicional, mas a sua posição
de força lhes permitirá gerar renta de monopólio, sob forma de dividendos e de preços
mais elevados, que todos os cidadãos irão pagar.
Apropriação dos bens e serviços de consumo coletivo
Em economias que funcionam de maneira razoável, o bem-estar das famílias depende
em grande parte do acesso gratuito a bens de consumo coletivo. Como ordem de
grandeza, podemos dizer que 60% do conforto familiar depende do dinheiro no bolso,
que permite fazer as compras, pagar o aluguel, coisas que permitem que nos sintamos
mais seguros e donos das nossas vidas. Mas os outros 40% constituem o que tem sido
chamado de salário indireto, e consiste no acesso aos bens de consumo coletivo.
Precisamos de segurança, mas não se compra a delegacia de polícia. Temos de ter
acesso aos serviços de saúde, não só curativos como preventivos, sob forma de
saneamento básico, controle de emissões, restrição aos agrotóxicos e antibióticos na
nossa comida. O acesso à educação precisa ser generalizado, gratuito, público e
universal, toda criança precisa ter a sua chance na vida, e a desigualdade do acesso trava
o imenso potencial de contribuição econômica e social da massa mais pobre da
população, constituindo uma esterilização das possibilidades de desenvolvimento.
Thomas Piketty trabalha com razão a desigualdade educacional no mesmo nível crítico
que a desigualdade de renda e de patrimônio.
O rentismo nessa área surge, no Brasil como em outros países, do fato que as restrições
do acesso aos bens de consumo coletivo obrigam as famílias a se voltarem para os
serviços privados. É o caso, por exemplo dos planos privados de saúde. Ainda que
representem solução adequada para os mais ricos, que querem ter um serviço sob
medida, a saúde privada deixa de fora a ampla maioria da população. A lei do Teto de
Gastos, ao reduzir os recursos do SUS, por exemplo, força as pessoas a contratarem
planos privados, ainda que estejam no limite em termos de renda. A fragilização da
educação pública tende a ter o mesmo efeito, empurrando os pais a se sacrificarem para
assegurar um melhor futuro para os seus filhos, com uma base mais sólida de
conhecimentos. A guerra contra as universidades federais tende a ter o mesmo efeito, de
forçar mais clientes para o que se tornou uma indústria do diploma. Uma geração de
estudantes que saem das universidades com grandes dívidas, para descobrir que o
emprego sonhado não é garantido, faz pouco sentido.
Não são médicos os que comandam os planos privados de saúde, nem educadores no
caso das escolas, e sim grupos financeiros. A revista Forbes apresenta as fortunas
pessoais acumuladas em 2019. Carlos Wizard tem uma fortuna pessoal de 3 bilhões de
reais: “Wizard voltou ao mundo da educação em 2017, com a compra de 35% da Wiser
Educação, dona das redes WiseUp e NumberOne, do também bilionário Flávio Augusto
da Silva. Em abril deste ano, o grupo vendeu participação minoritária do grupo para o
Itaú, por meio do seu fundo de investimentos Kinea, por 200 milhões. ” Educadores?
É importante notar que se trata de negócios, numa era em que o acesso à educação está
se tornando fundamental. Chaim Zaher acumulou uma fortuna de 2,5 bilhões, vendendo
as marcas Dom Bosco, Pueri Domus, Name e COC para a financeira britânica Pearson
por 888 milhões, e a rede de ensino superior UniSEB para o grupo Estácio por 615
milhões. (p.101) O paraibano Janguiê Diniz é o principal acionista da Ser Educacional,
abriu capital na Bovespa em 2013, comprou a Univeritas de Minas Gerais em 2016, e
investe em educação a distância, uma grande indústria com baixos custos, elevados
lucros, e frágeis resultados educacionais.
Na área da saúde é característico o comportamento de Paulo Sérgio Barabanti, com uma
fortuna de 1,6 bilhão, que vendeu a Intermédica para a private equity norte-americana
Bain Capital, se retirou da atividade e vive da fortuna acumulada. Para que se tenha uma
ordem de grandeza, uma pessoa que aplica a fortuna de 1 bilhão para um módico
rendimento de 5% ao ano está ganhando 137 mil reais por dia, de mão no bolso. É o
caso igualmente de José Seripieri Filho, com uma fortuna de 1,2 bilhão, que fez fortuna
com a Qualicorp, que administra planos de saúde coletivos no Brasil. Repassou a
atividade para outros, e passou a viver do rendimento de ações. É um comportamento
generalizado: empresários que começaram uma atividade produtiva, vendem a empresa
para grupos financeiros, muitas vezes estrangeiros, como a Pearson na área da
educação, ou a BlackRock na área da saúde, e passam a viver do rendimento das ações.
As empresas, por sua vez, passam a ser utilizadas para extrair o máximo de dividendos.
Os 11 bilionários que vivem de explorar o setor da saúde acumularam uma fortuna de
56,88 bilhões de reais. As empresas que gerem essas fortunas buscam extrair o máximo.
A educação dos jovens e a saúde das famílias constituem apenas uma fonte. The
business of business is business.
O raciocínio pode ser aplicado a numerosos setores. Tanto o conforto das famílias como
a produtividade das empresas dependem por exemplo de ruas asfaltadas, de redes de
estradas e semelhantes. O essencial aqui, é que grande parte das infraestruturas foi
construída com recursos públicos, permitindo rendimentos mais elevados do setor
privado sem que as empresas tenham contribuído significativamente para os custos. A
produtividade sistêmica de um país, e o lucro ampliado das empresas, dependem muito
das infraestruturas e dos serviços de consumo coletivo, lucro líquido para as empresas,
que irão se referir apenas à própria criatividade e ao poder mágico dos ‘mercados’. Essa
dimensão simplesmente não aparece nas contas econômicas, mas sim nas análises de
Hazel Henderson, que apresenta a necessidade de ajuste na contabilidade nacional,
incluindo a contribuição produtiva das infraestruturas geradas pelo setor público.
Mariana Mazzucato e Robert Skidelsky denunciam a política fiscal contracionista, e
resgatam esse papel das políticas públicas: “A crise do covid-19 tornou as falhas do
modelo ortodoxo ainda mais óbvias, ao ressaltar a grave deficiência de bens públicos,
desde a infraestrutura básica de saúde até equipamentos de proteção individual...Agora
que o COVID-19 expôs os danos causados pelo paradigma anterior, é hora de começar a
mapear uma nova era de investimento público para remodelar nosso cenário
tecnológico, produtivo e social. Deixadas por conta própria, as economias de mercado
tendem a favorecer atividades de curto prazo ou de rentismo — daí as tendências
radicais de financeirização e desindustrialização testemunhadas nas últimas quatro
décadas.” Quando corporações usam serviços públicos mas praticam a evasão fiscal,
trata-se do free-riding de rentistas.
Evasão fiscal
O dinheiro ganho pelos rentistas gera imensas fortunas sem contribuição produtiva, mas
também sem pagar impostos. O sistema econômico em geral depende em grande parte
de capital público acumulado, hoje muito amplo nos países ricos, mas também no
Brasil, sob forma de infraestruturas energéticas, de transportes, de comunicação, de
saneamento, além dos sistemas de saúde, educação, segurança e outros que são
essenciais para a sociedade como um todo. O excedente produzido pela sociedade
depende vitalmente do capital público acumulado. Essa base essencial da produtividade
econômica foi financiada com recursos públicos, e pagar os impostos constitui um dever
tanto do cidadão como das empresas que usam essas infraestruturas. Boas
infraestruturas reduzem custos de produção, constituindo economias externas para as
empresas. Mas as grandes fortunas têm suficiente força política para evitar de pagar a
sua parte.
No caso Brasileiro é absurda a lei de 1995 que isenta de tributação lucros e dividendos
distribuídos. Mas o caso dos magnatas mundiais não é muito diferente, como se viu com
os dados fiscais dos maiores bilionários americanos vazados em 2021. Um sistema
infantil de simples permite uma evasão gigantesca: nos Estados Unidos, os bilionários
mantêm as suas fortunas em ações, imóveis, objetos de luxo, que só seriam taxados
quando vendidos. “O sistema tributário dos Estados Unidos foca na renda, não no que é
chamado de ganhos não-realizados sobre ações não vendidas, imóveis ou outros
ativos...Ninguém entre os 25 mais ricos evitou tanto imposto como Buffett, o ancião
centibilionário. Isso talvez seja surpreendente, dada a sua imagem pública como
advogado de impostos mais elevados para os ricos. De acordo com a Forbes, a sua
riqueza aumentou em US$24 bilhões entre 2014 e 2018. Durante esses anos, os dados
mostram, Buffett informou ter pago US$23,7 milhões em impostos. Isso representa uma
alíquota efetiva de 0,1%, ou seja, menos de 10 centavos para cada US$100 que ele
acrescentou à sua riqueza.” Os dados do ProPublica mostram que o comportamento é
generalizado, envolvendo as maiores fortunas.
Robert Reich, que foi secretário do trabalho de Clinton, mostra a relação entre a evasão
fiscal absurda – quanto mais ganham, menos pagam – e a apropriação do processo
decisório público nos Estados Unidos: “A bomba que representou o relatório do
ProPublica sobre o fato dos super-ricos americanos pagarem pouco ou nada em
impostos revela não só a sua riqueza espantosa como também a forma como traduziram
essa riqueza em poder político para encolher os seus impostos para quase nada.”
Eric Toussaint, um especialista em dívida, traz com clareza o impacto dos ricos não
pagarem impostos sobre o crescimento da dívida pública: “A dívida pública continua a
explodir em volume porque os governos estão se endividando massivamente para evitar
de taxar os ricos no pagamento das medidas de resistência à Covid-19, e não demorarão
a retomar a sua ofensiva de austeridade.” Mariana Mazzucato apresenta os
mecanismos que permitem que as corporações usem recursos desenvolvidos no setor
público, cobrando dos consumidores pelo que não produziram, e sonegando impostos
sobre os lucros obtidos.
Paraísos fiscais
Os paraísos fiscais jogam um papel hoje fundamental na perda de controle por parte dos
Estados. O exemplo da Microsoft é ilustrativo do comportamento geral das grandes
corporações: “Uma subsidiária irlandesa da Microsoft teve um lucro de US$315 bilhões
no ano passado mas não pagou imposto sobre corporações já que é ‘residente’, para
efeitos tributários, em Bermuda. O lucro gerado pela Microsoft Round Island One é
igual a quase três-quartos do PIB da Irlanda – ainda que a empresa não tenha
empregados. A subsidiária, que recolhe direitos de licenciamento para o uso de software
da Microsoft sujeito a copyrights, apresentou um lucro anual de US$314,7 bilhões no
ano até o final de junho de 2020, de acordo com as contas prestadas na Irish Companies
Registration Office.” A Microsoft não era uma empresa americana?
O Roosevelt Institute aponta igualmente o peso dos paraísos fiscais e a perda de
controle público sobre as grandes corporações, na ausência de instrumentos
multilaterais de regulação: “A legitimidade das instituições econômicas multilaterais
depende de elas produzirem resultados que líderes de estados soberanos e democráticos
possam abraçar. Quando corporações multinacionais transferem US$1,38 trilhões dos
seus países de origem para paraísos fiscais como Luxemburgo ou as Ilhas Cayman para
evitar de pagar impostos, e companhias como Facebook detêm um poder
desproporcional nas nossas democracias, as instituições multilaterais podem e devem
servir como poder coletivo de contrapeso para prevenir a extração de riqueza às
expensas da nossa população...Agora é o tempo de nos movermos para além da ordem
neoliberal e para uma nova era de igualdade e justiça. Agora é o momento de
reescrevermos as leis internacionais.” Felícia Wong, do Roosevelt Institute, estima que
precisamos de um novo Bretton Woods, e lembra corretamente que as opções
pertencem a nós como sociedade, são regras (rules) e não “leis” econômicas
imaginárias: “Os resultados econômicos são o produto de instituições políticas, de
escolhas humanas, e de regras que estruturam os mercados.”
Depois de anos de hesitações, em meados de 2021 finalmente aparece no horizonte uma
proposta de uma taxa de 15% sobre os lucros das corporações transnacionais. Dani
Rodrik resume: “O acordo do G7 tem dois eixos. Primeiro, propõe um imposto mínimo
de 15% sobre as maiores corporações. Segundo, uma parte do lucro global dessas
corporações será trazido de volta aos países onde fazem os negócios,
independentemente da localização das suas sedes físicas.” A importância da decisão
do G7 é sem dúvida o fato de possibilitar financiamento adicional de políticas públicas,
mas também do fato dos fluxos financeiros internacionais passarem a ser registrados, e
o Economist avalia que se trata de uma restrição drástica ao papel dos paraísos fiscais
em geral. Mas por enquanto o sistema segue se expandindo, como se constata nas
sucessivas revelações do ICIJ sobre os Panama Papers, Paradise Papers e Pandora
Papers.
Para quem pensa que a evasão fiscal por meio de paraísos fiscais é um processo
marginal, o Economist traz os números básicos: ”Um estudo de 2018 concluiu que cerca
de 40% dos lucros das multinacionais realizados no exterior são artificialmente
transferidos para países de impostos baixos. Um funcionário envolvido de perto nas
discussões atuais pensa que o acordo que está tomando forma poderia “praticamente
matar os paraísos”...A parte dos lucros no exterior das multinacionais registrados nos
paraísos fiscais subiu de 30% duas décadas atrás para cerca de 60% hoje.” São 60%
dos lucros, e dobrando em duas décadas.
Apresentamos os dados de forma mais detalhada no livro A Era do Capital
Improdutivo. O que nos interessa aqui, é que esses recursos não fazem parte de um
processo de reprodução do capital, é literalmente dinheiro gerando dinheiro, processos
extrativos que asseguram uma apropriação radicalmente mais intensiva do excedente
social por elites improdutivas. Lembremos que Marx, no livro II de O Capital,
considerava essa evolução para a ampliação do capital fictício como previsível. O que
para nós é essencial, é que o capital fictício, tornando-se dominante, com capacidade
inclusive de se apropriar das políticas públicas, e prejudicando a acumulação produtiva
do capital que era central no sistema capitalista, apresenta dinâmicas estruturalmente
diferentes quando se torna dominante. Neste mundo governos nacionais enfrentando
dinheiro global. Gerou-se o caos financeiro, um cassino especulativo insustentável.
Outros drenos
A breve apresentação das formas de apropriação improdutiva do excedente social que
aqui desenhamos pode ser expandida. Por exemplo, a manipulação das pessoas, que
ainda chamamos inocentemente de marketing, transformou-se em gigante econômico.
Envolve a análise detalhada e comercialização dos nossos comportamentos, canalização
individualizada de mensagens comerciais e políticas por meio de algoritmos, que geram
a força econômica do Alphabet, com quase dois de trilhões de dólares (mais do que o
PIB do Brasil), ou do Facebook, acima de 1 trilhão. Esse dreno financeiro atinge o bolso
de cada um de nós, ao ser incorporado, pelas empresas que usam esses serviços, nos
custos de produção do que compramos. Usar o Face aparece como gratuito, mas os
custos são cobrados de todos nós, indiretamente. Custos reduzidíssimos, lucros
desproporcionais. É rentismo de intermediação da comunicação, mas também poder.
Usar o Facebook, Meta, é gratuito, a publicidade é gratuita, mas todos pagamos os seus
custos e os seus lucros ao pagarmos qualquer produto.
É igualmente importante estudar o dreno financeiro que representa a especulação
imobiliária, tão bem apresentada no Brasil por Ermínia Maricato. Gigantescas fortunas
são colocadas ao abrigo do fisco ao serem investidas em imóveis. As áreas nobres de
Londres, por exemplo, têm inúmeras residências que pertencem a magnatas dos mais
diversos países, esperando valorização. A cidade de Vancouver, no Canadá, viu os
custos de habitação explodir sob pressão de capitais chineses aplicados em imóveis, em
geral não habitados, apenas reserva de valor que aumenta à medida que a pressão
demográfica aumenta. É enriquecimento que não acrescenta disponibilidade de
habitações, e sim gera apropriação especulativa. A compra de terras por grupos
financeiros gera também encarecimento do seu uso para a agricultura. O verbete na
Wikipédia sugere o óbvio: “Um imposto sobre o valor da terra remove os incentivos
financeiros para a posse de terra parada apenas para valorização, tornando mais terra
disponível para usos produtivos. ” O rentismo drena investimentos que poderiam ser
produtivos.
Aparece hoje como igualmente importante o dreno financeiro que constituem os direitos
sobre as mais variadas tecnologias e o conhecimento científico, por meio de patentes,
copyrights e royalties dos mais diversos tipos. Estudamos esta dimensão no artigo Da
propriedade intelectual à economia do conhecimento, e Mariana Mazzucato apresenta
uma excelente sistematização no já citado O Estado Empreendedor. Hoje generalizouse
a compreensão de que o sistema de patentes, longe de recompensar a inovação,
tornou-se um entrave: assegurar um monopólio de 20 anos sobre uma ideia podia ser
realista há um século atrás, mas com o ritmo de hoje, como se constata no escândalo das
patentes sobre vacinas contra a Covid-19. Travar o acesso ao conhecimento científico
quando este se tornou o principal fator de progresso econômico e social, é
profundamente contraprodutivo. Gerou-se um autêntico capitalismo de pedágio.
***
Não se trata de discussão semântica. Pois muito além da exploração salarial, temos de
entender melhor os mecanismos atuais de apropriação do excedente social por meio do
endividamento generalizado, do aumento extorsivo dos dividendos, de intermináveis
patentes, da evasão fiscal, dos paraísos fiscais, da apropriação do capital natural do
planeta, da microdrenagem de recursos por tarifas, das taxas sobre transferências
internacionais, de cobranças sobre os cartões de crédito, do rentismo dos monopólios,
dos monopólios de demanda, da especulação imobiliária, do comércio de informações
pessoais, da manipulação publicitária individualizada e outros mecanismos que
entendemos muito menos, e que somos individualmente incapazes de enfrentar. Um
salário extorsivo pode levar a uma greve, lutas, paralisia e acordos com a empresa.
Quem é extorquido por uma taxa elevada de juros vai manifestar frente a uma agência
bancária? Uma parte importante do que você pagou no Uber vai para grupos financeiros
nos Estados Unidos. Não é preciso fazer um cheque ou uma ordem de pagamento: é
automático. O dinheiro imaterial é muito fluido, e vaza por todos os lados. Quanto mais
os intermediários privados drenam os nossos recursos, mais desviam a nossa atenção
para os impostos.
É importante lembrar que o sistema financeiro mundial não gera os seus lucros apenas
ganhando dinheiro com dinheiro (pecunia pecuniam parit, diziam os antigos). Exemplo
prático: eu, em São Paulo, paga 200 reais pelo dia da minha faxineira. Ela tem
problemas de saúde, e com a fragilização do SUS pelo governo, passou a pagar um
plano privado de saúde. No caso, o grupo financeiro que controla esse plano de saúde
tem a BlackRock como acionista. Ou seja, parte do dinheiro que pago para a minha
faxineira vai contribuir para os acionistas da BlackRock em qualquer parte do planeta.
São formas muito diversificadas de microdrenagem de dinheiro que penalizam bilhões
de pessoas. Alguém tem de pagar pelos gigantescos lucros da indústria de gestão de
ativos e outros agentes financeiros que hoje dominam: as novas tecnologias permitem
fazer funcionar uma teia de drenos que atinge a base da sociedade em qualquer parte do
planeta. Cada um de nós contribui quando faz um pagamento com cartão, ou toma um
Uber. A desigualdade tem sólidas raízes e estamos todos nos debatendo na teia.
A transformação nas formas de exploração nos obriga a repensar e redirecionar nossas
frentes de luta. Com a pandemia, por exemplo, tornou-se evidente o caráter explorador
da grande indústria farmacêutica, e as pessoas passaram a se dar conta da importância
de repensar o sistema de patentes. O pagamento quase nulo de impostos pelos
bilionários improdutivos mostra a que ponto é importante gerar um sistema articulado
de cobrança internacional. O travamento do acesso ao conhecimento científico por parte
dos oligopólios mostra a necessidade de expandir o Creative Commons, Open Access e
outros mecanismos colaborativos e gratuitos de comunicação científica. O
endividamento generalizado das famílias, das empresas e dos Estados aponta para a
necessidade de assegurar, por meio de finanças públicas e de finanças de proximidade,
que os recursos sejam direcionados para o desenvolvimento sustentável. O peso da
indústria de gestão de fortunas (asset management industry) e de ativos financeiros em
geral, BlackRock e semelhantes, precisa ser drasticamente reduzido: o dinheiro não é
deles, e são gestores de capital improdutivo.
A lógica geral propositiva, é que quando os mecanismos de apropriação do excedente
social se deslocam, mudam também as frentes de luta para que os recursos, que são da
sociedade e não dos intermediários, voltem a servir à sociedade. Em outros tempos a
luta era por socializar os meios de produção, as fábricas. Hoje o poder sobre as próprias
fábricas de deslocou: o desafio principal está nos gestores improdutivos que se
apropriaram do conjunto, inclusive em boa parte do sistema público, como por exemplo
do Banco Central no Brasil.
Um desafio particularmente complexo, é que o dreno dos recursos econômicos da
sociedade pelos intermediários dos mais diversos tipos, afeta também a base política das
transformações. As grandes plataformas de comunicação e os sistemas online de
serviços financeiros, e inclusive o sistema de exportação primária atual, geram
pouquíssimos empregos. Estamos na era da uberização, do telemarketing, dos empregos
precários e da massa de trabalhadores subutilizados, conforme vimos, porque os
sistemas de pedágio econômico que passaram a predominar simplesmente não precisam
de muitos trabalhadores. “O que há de novidade no mundo do trabalho no Brasil é
justamente a plataformização, que joga uma pá de cal no processo histórico de
flexibilização e precarização do trabalho, agora em parceria com financeirização,
dataficação e racionalidade neoliberal.”49 A força social de transformação que
representavam os trabalhadores formais nas grandes empresas diminuiu em número,
ficou mais fragmentada em segmentos especializados, é frequentemente manejada a
distância por algoritmos, e os sindicatos e diversas formas de representação se
fragilizaram. O precariado nos leva a um outro conceito de luta de classes.
E a revolução digital, que caracteriza os novos tempos, nos leva a pensar no potencial
de uma mudança cultural profunda na sociedade, deslocando o eixo principal de
relações sociais baseado na competição, para uma sociedade centrada na colaboração.
Não se trata aqui de um sonho humanista, e sim do fato que numa sociedade em que o
principal fator de produção é o conhecimento, os processos colaborativos são
simplesmente muito mais produtivos do que competição. Robin Ahnel resume:
“Campanhas que já estão em curso podem começar com a transição da economia da
competição e ganância (greed) para a economia de cooperação equitável. ” 50 Grohmann
apresenta as numerosas iniciativas no resgate do potencial da conectividade para uma
gestão colaborativa em rede: “As plataformas cooperativas podem ser de trabalhadores,
consumidores ou multilaterais, o que mostra as múltiplas possibilidades nos seus
desenhos institucionais.” São novas frentes de luta, muito além do nível de
remuneração. O processo tecnológico não irá se reverter, precisa ter o seu sentido
político revertido para que sirva à sociedade, e não às próprias plataformas.
Essa transformação tem sólida base: quando o principal fator de produção é o
conhecimento, que com a conectividade online pode ser replicado ao infinito sem custos
adicionais para quem o produziu, podemos generalizar o acesso, remunerando apenas os
custos iniciais da sua geração, e multiplicando os benefícios por milhões de utilizadores.
Na China, no quadro do CORE (China Open Resources for Education), um inovador
recebe um bônus da instituição, e o avanço é repassado para toda a rede de
universidades e de centros de pesquisa, assim que ninguém fica reinventando a roda,
todos trabalham na crista da inovação. Gera-se um ambiente colaborativo
sistemicamente inovador. Wikipédia, Open Access, Creative commons, OCW do MIT e
tantas outras experiências, apresentadas entre outros no livro Wikinomics, apontam para
um caminho muito mais equilibrado e produtivo.
O processo de construção interativa e colaborativa de conhecimento em rede é mais
justo, pois permite reduzir o impacto de atravessadores que travam o acesso a um
conhecimento que poderia multiplicar a produtividade de outros agentes. Gar Alperovitz
e Lew Daly trazem aqui uma excelente análise, no livro Apropriação Indébita,
mostrando por exemplo que se não fossem os avanços sobre a tecnologia do transistor e
do microprocessador desenvolvidos por outros, um Bill Gates estaria na sua garagem
brincando com tubos catódicos. Pagamos fortunas por um produto para o qual a sua
empresa contribuiu muito pouco, aproveitando conhecimentos desenvolvidos por outras
instituições e centros de pesquisa, e destruindo competidores. Hoje somos forçados a
utilizar o Word, por exemplo, simplesmente porque temos de utilizar o que os outros
usam. Não há mercado nem competição, apenas monopólio de demanda e rentismo. Até
quando ficaremos pagando esse pedágio? O conhecimento é uma construção social, e o
seu retorno deve ser para a sociedade. O objetivo não é controlar o conhecimento, é
liberá-lo dos atravessadores.
A conectividade planetária permite muito mais gestão horizontal em rede, no lugar das
gigantescas pirâmides de poder verticalizado. A riqueza do planeta, fruto dos avanços
científicos e do desenvolvimento da capacidade produtiva, atingiu um nível que hoje
permite que todos vivam de maneira digna e confortável, bastando para isso uma
redistribuição moderada de riqueza, e em particular o controle do dreno financeiro por
parte de agentes econômicos improdutivos. A guerra de todos contra todos, o homo
homini lupus, com as tecnologias modernas de guerra, de sabotagem cibernética, de
manipulação biológica, das técnicas de vigilância, nos apresenta um horizonte
destrutivo. Somos todos tripulantes da espaçonave terra, mas há os que preferem ser
passageiros de luxo, ou até comandantes, e estão destruindo a própria nave.
A exploração por meio de salários baixos, a tradicional mais-valia extraída dos
trabalhadores, continua sem dúvida presente. Mas a apropriação do excedente social se
ampliou radicalmente, por parte de atravessadores de diversos tipos, que cobram
pedágio sobre praticamente todas as nossas atividades, quer contribuam produtivamente
ou não. Não há dúvidas quanto ao poder financeiro, midiático, militar e até de controle
das pessoas pelos algoritmos individualmente direcionados, por parte dos gigantes
corporativos. Mas é também fato que são não só improdutivos, como destroem a nossa
base natural de sobrevivência, nos jogam numa situação de desigualdade explosiva,
obrigam a massa da população a recorrer a atividades humilhantes para sobreviver no
setor informal, isso quando a riqueza acumulada, os conhecimentos científicos e as
tecnologias modernas permitem que o mundo se desenvolva de maneira sustentável e
equilibrada.
Em particular, não há nenhuma razão econômica para tanta destruição, violência e
sofrimento. Uma conta simples ajuda: os 90 trilhões de dólares que representam o PIB
mundial, divididos pela população mundial de 8 bilhões de pessoas, equivalem a 20 mil
reais por mês por família de quatro pessoas. No Brasil, o equivalente é 11 mil reais por
mês. Com uma moderada redução das desigualdades, com o que produzimos hoje
poderíamos assegurar a todos uma vida digna e confortável, e financiar medidas para
parar de destruir o planeta. A catástrofe em câmara lenta que vivemos não é
inevitável. Não se trata de “leis” econômicas, são escolhas. Thomas Piketty deixa isso
claro: “A desigualdade é antes de tudo uma construção social, histórica e política. Dito
de outra forma, para o mesmo nível de desenvolvimento econômico ou tecnológico,
existem sempre múltiplas formas de organizar um sistema de propriedade ou um regime
de fronteira, um sistema social e político, um regime fiscal e educativo. Essas escolhas
são de natureza política. ”
Como escreveu Martin Wolf, economista chefe do Financial Times, este sistema perdeu
a sua legitimidade. É um gigante financeiro, mas com pés de barro por travar o
desenvolvimento. Cabe a nós batalhar por uma sociedade que faça sentido, olhando o
potencial colaborativo que se abre com a revolução digital. Construir o futuro é mais
promissor do que tentar consertar o passado. A história da humanidade tem sido
dominada por minorias que se apropriam do excedente social e que geram sucessivas
narrativas ou contos de fadas para justificar a exploração. E para os que não acreditam
em contos de fadas, naturalmente, há o porrete. Mecanismos de exploração, narrativas e
o porrete continuam ativos. É tempo de nos civilizarmos.
III – A SUBUTILIZAÇÃO DOS POTENCIAIS EXISTENTES
O capitalismo financeiro é eficiente em extrair recursos, mas deixou de ser um eficiente
organizador dos processos produtivos. Pode ser eficiente no nível interno de
organização de uma empresa, no sentido de maximização do retorno financeiro, mas a
sua ineficiência sistêmica é simplesmente impressionante. Keynes, nos anos 1930 já, se
espantava de tanta gente parada com tanta coisa por fazer. Hoje esta compreensão é
mais atual do que nunca. Ficarmos aguardando que os mercados “resolvam”, reduzindo
impostos, eliminando mecanismos de regulação, fechando os olhos sobre os desastres
ambientais e a desigualdade explosiva que provocam, é um contrassenso. A inclusão
produtiva se organiza, aproveitando todos os recursos, tanto os mecanismos de
mercado, como o planejamento e regulação públicos, e os sistemas participativos da
sociedade civil. Um enfoque muito útil, trabalhado em particular por Ignacy Sachs,
consiste em inventariar os recursos subutilizados, o potencial parado ou mal aproveitado
que existe no país. Isso permite ter uma visão de conjunto, uma compreensão das peças
que precisam ser articuladas.
A subutilização de fatores de produção no Brasil, tema que envolve tanto a economia
como a política, e tem tudo a ver com a dimensão estrutural dos nossos dramas. É uma
visão prática. Qualquer pessoa que já administrou uma empresa, um projeto, um
território, ao ver pessoas paradas, máquinas paradas, terra subutilizada, capital sem
utilidade, pensa em como articular o conjunto. É uma questão de organização, não de
esperar a fada da ‘confiança’. O capitalismo atual é de uma ineficiência sistêmica
impressionante.
A subutilização da mão de obra
Voltamos aos números que vimos acima, com mais detalhe. A realidade é chocante:
neste país de 214 milhões de habitantes, o emprego formal privado, com carteira
assinada (excluído trabalho doméstico) se resume a 33 milhões de pessoas. Somando
11 milhões de funcionários públicos, são 44 milhões, apenas 42% da força de trabalho
de 106 milhões. A subutilização da força de trabalho constitui uma dimensão
particularmente gritante da nossa fragilidade econômica, pois se trata, para além do
drama social, de uma enorme insensatez econômica. A Síntese de Indicadores Sociais
2019 do IBGE traz uma seção sobre essa questão.
Como ordem de grandeza, temos 40 milhões de pessoas no setor informal. Segundo o
IBGE, a renda desses trabalhadores é a metade da renda que o trabalhador formal
aufere. São pessoas que no essencial “se viram”. Ser ‘empreendedor individual’ sem
dúvida frequentemente assegura uma aparência mais digna à subutilização, mas vemos
na própria uberização e terceirizações irresponsáveis o que isso pode significar. E temos
15 milhões de pessoas formalmente desempregadas. Somando os 40 milhões do setor
informal e os 15 milhões de desempregados, são 55 milhões, a metade da força de
trabalho. A esse contingente precisamos acrescentar o imenso desalento, pessoas que
estão em idade de trabalho, mas desistiram de procurar, e ainda as pessoas classificadas
como empregadas, mas que trabalham apenas algumas horas.
No conjunto, a subutilização da força de trabalho, num país onde há tantas coisas por
fazer, é absolutamente chocante. Em cada um dos 5.570 municípios do país, temos por
exemplo pessoas desempregadas e terra parada. Não é complicado pensar que se possa
organizar um cinturão verde hortifrutigranjeiro em torno de cada um, simplesmente
articulando os fatores de produção parados. Em Santos, no tempo de David Capistrano,
acompanhei o projeto em que os desempregados da cidade foram cadastrados e
organizados na Operação Praia Limpa, que permitiu realizar as obras de saneamento,
tirando os esgotos dos canais pluviais, o que recuperou a balneabilidade das praias, e em
consequência o turismo, a atividade hoteleira e semelhantes, transformando uma
operação temporária em empregos permanentes. O prefeito não ficou esperando “os
mercados”: gerou a base da sua dinamização. Exemplos não faltam, planejamento
econômico e social consiste em boa parte em articular fatores subutilizados.
Um argumento ideológico sempre buscou justificar a desigualdade com a falta de
iniciativa dos pobres: o pobre não precisa que lhe ensinem disposição para trabalhar,
precisa de oportunidades. Isso envolve planejamento e iniciativas públicas, em vez de
discursos ideológicos.
A subutilização da terra
O censo agropecuário de 2017 nos dá outra dimensão da subutilização dos fatores. O
Brasil é imenso. Os 8,5 milhões de quilómetros quadrados correspondem a 850 milhões
de hectares. Segundo o censo, 353 milhões de hectares constituem estabelecimentos
agrícolas. Nesses, 225 milhões de hectares constituem solo agricultável, portanto
disponível para atividades produtivas, tanto pela qualidade do solo como pela
disponibilidade de água. O que choca, é que somando a lavoura permanente e
temporária, o uso produtivo no sentido pleno ocupa 63 milhões de hectares.
Arredondando, temos 160 milhões de hectares de solo agrícola parado ou subutilizado.
Essa área representa 5 vezes o território da Itália. Precisamos desmatar a Amazônia?
Quem conhece a Europa ou a China e viaja pelo interior do Brasil, fica espantado com
as gigantescas áreas de terra parada, ou subutilizada.
Grande parte dessa terra parada ou subutilizada é ocupada pela pecuária extensiva. O
limite entre terra produtiva e improdutiva gerou um amplo debate devido à pressão
secular pela reforma agrária no país. Usar imensas regiões com quase um hectare por
cabeça de gado gera sem dúvida fortunas para os conglomerados agroexportadores de
carne, mas para quem conhece formas modernas de criação de gado semi-confinado,
com as unidades de pecuária plantando forragem, o desperdício torna-se evidente.
Numa imensa parte do Brasil, o solo constitui apenas a base para um rentismo
improdutivo. A pecuária extensiva gera pouquíssimo emprego, poucos impostos, e está
articulada com os grandes traders internacionais de commodities.
Um resgate do ITR, Imposto Territorial Rural, que no Brasil constitui uma ficção,
permitiria sem dúvida estimular a produtividade: como na Europa e em outras regiões, o
fato de pagarem impostos sobre terra parada estimula os proprietários a utilizá-la de
maneira mais produtiva, ou vendê-la para quem produza. Em particular, é preciso
tributar o rentismo, em que se valorizam terras com a simples expansão de
infraestruturas e da urbanização. Em Imperatriz do Maranhão, mais de 80% dos
produtos nas gôndolas dos supermercados vêm de São Paulo, enquanto em volta da
cidade dormem imensas extensões de terra parada, que se valoriza passivamente com a
expansão urbana. Estamos esperando que “os mercados” resolvam?
A subutilização do capital
Tão gritante como a subutilização da força de trabalho e da terra no Brasil, é a
subutilização do capital, que se transforma em patrimônio familiar e aplicações
financeiras em vez de investimentos produtivos. Isso trava o desenvolvimento de
infraestruturas, a produção de bens e serviços e o emprego. No Brasil são raros os que
fazem a distinção tão essencial entre aplicação financeira e investimento produtivo. Em
francês, a diferença entre placements financiers e investissements é bastante clara. O
Economist, por falta de conceito de aplicação financeira, distingue speculative
investments e productive investments. Mariana Mazzucato utiliza financial investments
para caracterizar a diferença. O fato é que no Brasil o que os bancos chamam de
investimento constitui uma imensa esterilização dos nossos recursos. Especuladores
gostam de se chamarem de ‘investidores’.
Os 315 bilionários brasileiros apresentados na edição especial da Fortune são
essencialmente donos de holdings, acionistas, controladores de fundos de investimentos,
donos de cotas acionárias, e naturalmente banqueiros ou acionistas de bancos. Grande
parte são simplesmente herdeiros. A intermediação financeira transformou-se entre nós
em autêntica extorsão. Um dos principais mecanismos são as taxas usurárias de juros,
representando como ordem de grandeza ao mês o que no resto do mundo se cobra ao
ano. Exemplos de custo efetivo total de crédito apresentados pela ANEFAC
(Associação Nacional de Executivos de Finanças, Administração e Contábeis) incluem,
para pessoa física em dezembro de 2021, 81% em média no crediário comercial, 347%
no cartão de crédito, 141% no cheque especial, 55% no empréstimo pessoal nos bancos.
A título de comparação os juros sobre cartão de crédito no Canadá eram 22% ao ano,
reduzidos por ordem do governo para 11% com a pandemia. No Brasil, neste início de
2022, atingem quase 350%. Nas financeiras, onde no andar de baixo muita gente vai
buscar dinheiro de emergência, o crédito pessoal atinge 120%. Na Europa se situa na
faixa de 5% ao ano.
Para pessoa jurídica a média apresentada é de 51%. Todas essas taxas estão no mesmo
nível desde 2013, independentemente das variações da taxa básica de juros (taxa
Selic). O resultado é que duas forças essenciais de propulsão da economia, a demanda
das famílias e o investimento das empresas, se viram drasticamente reduzidas, ainda
antes da pandemia, que apenas agravou a extração improdutiva. Lembrando que o
último ano de crescimento significativo da economia brasileira foi 2013, de 3,0%. Com
a ofensiva contra a fase desenvolvimentista e distributiva em 2013 e 2014, a guerra da
Lavajato e o caos pré- e pós-eleitoral, a economia brasileira está no nono ano de
paralisia. O dreno dos recursos pelos grupos financeiros desarticulou a economia e a
mantém parada.
Em termos de teoria econômica, o conceito de financeirização se tornou essencial. Os
trabalhos de Thomas Piketty, de Joseph Stiglitz, de Marjorie Kelly, de Ann Pettifor, de
Ellen Brown, de Hazel Henderson e de tantos outros permitiram uma reviravolta depois
de 40 anos de dominância do discurso neoliberal. A base é simples: a produção de bens
e serviços, o PIB no mundo, aumenta em cerca de 2% a 2,5% ao ano. Os rendimentos
de aplicações financeiras em volumes elevados se situam entre 7% e 9%. Entre juros e
dividendos, ganhar dinheiro, o grande dinheiro, se divorciou em grande parte dos
processos produtivos. O capital vai para onde rende mais. O mecanismo básico de
apropriação do excedente social se deslocou: para explorar um assalariado, o empresário
precisa pelo menos gerar um posto de trabalho. Hoje o endividamento das famílias é
generalizado, as tarifas absurdas nos cartões atingem a todos. E os dividendos elevados
nas empresas produtivas tornam a expansão produtiva pouco viável.
O empresário efetivamente produtivo não precisa de “confiança” ou de discurso
ideológico, precisa de famílias com capacidade de compra, para ter para quem vender, e
de juros baratos para poder financiar a produção. No Brasil, ele não tem nem uma coisa
nem outra. Após tantos anos de Ponte para o Futuro em diversos formatos, as empresas
no Brasil estão trabalhando com 30% de capacidade ociosa. Harvey tem razão, o que era
capital, portanto dinheiro inserido no processo de acumulação produtiva do capital, hoje
é essencialmente patrimônio. Entre 2020 e 2021os 315 bilionários brasileiros
aumentaram os seus patrimônios em 700 bilhões, um aumento da ordem de 50% numa
economia parada. Já no início da pandemia, nos 4 meses entre março e julho de 2020, o
grupo mais restrito de 42 bilionários em dólares aumentou as suas fortunas em 180
bilhões de reais: é o equivalente a 6 anos de bolsa-família, para 42 pessoas, em 4 meses,
em plena pandemia. Lembrando ainda que desde 1995 esse tipo de ganhos é isento de
impostos (lucros e dividendos distribuídos).
A dinâmica econômica da China, ou da Coreia do Sul, por exemplo, não constitui um
milagre, tratou-se simplesmente de assegurar a orientação dos recursos financeiros para
atividades produtivas. Um relatório da ONU resume a questão: ”A prosperidade para
todos não pode ser assegurada por políticos com visão de austeridade, corporações
centradas no rentismo e banqueiros especulativos. O que necessitamos urgentemente
agora é um novo pacto global. ” O dinheiro tem de voltar a ser útil.
A subutilização do potencial científico-tecnológico
Hoje o principal fator de produção é o conhecimento. O que está se formando é muito
mais do que uma ‘indústria 4.0’. A mudança é sísmica. Adotamos aqui a mesma visão
expressa no New Scientist: “A tecnologia tem um potencial tão grande que a expectativa
geral é que o seu impacto seja tão profundo quanto o da revolução industrial.” Não é
só o dinheiro que se desmaterializou, simples sinais magnéticos registrados em
computadores, é o conjunto da economia que desloca as suas formas de organização
para o que André Gorz chamou de “o imaterial”. Não é mais a General Motors e
semelhantes que dominam o jogo, são os sistemas de controle das finanças e das
tecnologias, o GAFAM nos Estados Unidos, o BAT na China, os SIFIs (Systemically
Important Financial Institutions). No centro da economia, não está mais a fábrica, estão
as plataformas, os gestores de fortunas, os controladores da comunicação e da
informação pessoal.
É impressionante o recuo do Brasil com a submissão aos Estados Unidos no caso da
tecnologia do G5, a desestruturação das capacidades de pesquisa da Petrobrás, o
fechamento do programa de formação de cientistas no exterior, o travamento das bolsas
de pesquisa e de pós-graduação, a venda mal abortada da Embraer, a transformação do
país em mero comprador de patentes: o recuo nesta área terá impactos avassaladores
sobre o futuro do país. Temos mais de um terço da população sem acesso à internet,
numa era em que ficar fora do sistema digital significa isolamento social e desconexão
com as dinâmicas econômicas. Ainda temos universidades em que os alunos tiram
xerox de capítulos acumulados nas pastas de professores.
Ainda travamos acesso aos textos científicos quando o MIT os disponibiliza na
plataforma OCW (Open Course Ware), a China no sistema CORE (China Open
Resources for Education). O Japão há décadas possui sistemas online de apoio
tecnológico para pequenos produtores, inclusive de agricultura familiar. A Finlândia há
50 anos lançou o programa de generalização de elevação científico-tecnológica do país,
com programas educacionais públicos, gratuitos e universais. No Brasil ainda se discute
a privatização e distribuição de vouchers, proposta dos tempos de Ronald Reagan nos
Estados Unidos. A subutilização da imensa capacidade criativa da população, ao se
travar as oportunidades para a imensa maioria, constitui um crime contra as próximas
gerações, e demonstra uma profunda ignorância do que Jessé Souza chamou
adequadamente de A elite do atraso.
A subutilização das políticas públicas
Celso Furtado tinha a ideia clara da importância do Estado e do planejamento. No nosso
caso, em nome de ideologias ultrapassadas, está se paralisando o país, mas também
comprometendo o seu futuro. A ideia do ‘Estado mínimo’ é simplesmente burra. Há
coisas que a empresa privada faz melhor, como produzir tomate, bicicleta ou automóvel.
Entregar para grupos privados serviços básicos como saúde, educação, cultura,
segurança e outras políticas sociais leva a perdas radicais de eficiência. O maior setor
econômico dos Estados Unidos é hoje a saúde, cerca de 20% do PIB. O custo dos
serviços americanos de saúde, em grande parte privatizados, é de 10.400 dólares por
pessoa por ano. No Canadá, onde os serviços de saúde são públicos, gratuitos e de
acesso universal, o custo é de 4.400 dólares. O Canadá está entre os primeiros em
termos de qualidade da saúde da população, no conjunto dos países da OCDE, enquanto
os Estados Unidos estão entre os últimos.
Mariana Mazzucato, no seu O Estado Empreendedor, e no mais recente The Value of
Everything, traz com força a importância do papel do Estado na promoção de políticas.
Não se trata do tamanho do Estado, e sim dos efeitos multiplicadores, em termos de
produtividade sistêmica do país, que pode assegurar um Estado forte e orientado pelos
interesses da nação. No nosso caso, com a apropriação de funções-chave do Estado por
grupos privados, e a liquidação da regulação financeira, é o conjunto das atividades do
país que é prejudicado, atingindo inclusive tantas empresas produtivas que apoiaram os
retrocessos políticos, acreditando no conto de fadas. Entramos na era da pandemia com
6 anos acumulados de marasmo econômico e social. Resgatar o papel do Estado como
indutor de desenvolvimento, resgatar a função do planejamento na articulação dos
recursos subutilizados, e em particular resgatar a regulação do sistema financeiro, para
que financie o que é necessário ao país, são pontos de partida simplesmente necessários.
É impressionante ler no editorial do Financial Times de 4 de abril de 2020, já em plena
pandemia, de que “os governos terão que aceitar um papel mais ativo na economia, e
devem ver os serviços públicos como investimentos, não como obrigações.” Aqui
economistas pré-históricos falam em Estado-mínimo e qualificam os serviços públicos
como “gastos”.
***
No conjunto, a subutilização de fatores de produção no Brasil é impressionante, e torna
clara a dimensão central da paralisia econômica e social, que é a perda de produtividade
sistêmica. São imensos recursos parados, ou drenados de forma improdutiva, enquanto
o Estado, que é o principal articulador do conjunto, é imobilizado. As soluções residem
na organização da sinergia: juntar a terra parada e as pessoas paradas, mobilizar
finanças para assegurar o apoio científico tecnológico e compra de insumos
correspondentes, assegurar renda que dinamize a demanda para a produção crescente –
não há mistérios quanto às medidas a tomar. Em vez de bobagens como Estado mínimo,
privatização, juros elevados, prioridade às exportações ou teto de gastos, medidas que
enriquecem elites improdutivas, trata-se de orientar os recursos para onde terão efeitos
multiplicadores. O denominador comum dos países que funcionam, mesmo com
sistemas políticos diferenciados, é o de orientar a economia para o bem-estar das
famílias, mobilizando para isso não só as empresas como o Estado e as organizações da
sociedade civil.
IV – RESUMO DE POLÍTICAS: PROPOSTAS
Esta quarta parte sistematiza as propostas para uma sociedade que funcione, objetivo
que envolve tanto as dimensões econômicas, como de organização social e política, e
em particular um deslocamento da própria base cultural do que chamamos de
desenvolvimento. Agrupamos as propostas em quatro eixos: 1) a inclusão produtiva,
focando em particular o nosso principal dilema, a desigualdade; 2) os mecanismos
financeiros, focando as medidas necessárias para que os recursos sirvam ao
desenvolvimento equilibrado, e não apenas à alimentação de fortunas privadas; 3) a
modernização da gestão, dos processos decisórios hoje inoperantes, no sentido da
descentralização e da reapropriação pela base da sociedade, inclusive aproveitando as
novas tecnologias e a conectividade em rede; 4) e o repensar da base política de sustento
às novas dinâmicas de desenvolvimento inclusivo, em particular articulando as
desigualdades de renda, de riqueza, mas também regionais, de gerações, de raça, de
gênero, de sexualidade, buscando o resgate da dignidade humana para o conjunto da
sociedade: trata-se da dimensão político-cultural das transformações que temos pela
frente.
1) Inclusão produtiva
A inclusão produtiva como eixo estratégico está diretamente ligada à imensa
subutilização de fatores de produção que vimos acima. Lamentar o déficit público
quando se paralisou a fonte de recursos, que é a base produtiva do país, não faz sentido.
Ao fragilizar o consumo da população, ao travar o acesso às políticas sociais, ao reduzir
os investimentos em infraestruturas e ao aumentar o desemprego, o resultado é uma
paralisia geral. As propostas vão no sentido da dinamização da economia pela base,
gerando um ciclo virtuoso de desenvolvimento: renda, políticas sociais, investimentos
em infraestruturas e políticas públicas de emprego.
• Assegurar renda na base da sociedade
No Brasil de 2022 temos 19 milhões de pessoas passando fome, dos quais cerca de 25%
são crianças. Isso é um crime. Mas temos 116 milhões de pessoas em situação de
insegurança alimentar, ou seja, ora têm, ora não têm comida. Isso num país que produz
alimento para o exterior, simplesmente porque com a Lei Kandir, que isenta exportações
de impostos, e a valorização do dólar, exportar rende mais para os traders de
commodities. Mas faltam habitações, um déficit de cerca de 6 milhões de unidades, e
outros bens e serviços básicos, enquanto as empresas funcionam com uma capacidade
ociosa entre 25% e 30%, simplesmente porque não há mercado, ou seja, pessoas com
capacidade de compra. O fato é central para o desenho de uma estratégia de
desenvolvimento, já que temos ao mesmo tempo necessidades não preenchidas e
subutilização de capacidade.
Colocar recursos na base das sociedade, por meio de uma renda básica, da elevação do
salário mínimo, com a reconstrução da previdência, a garantia de preços mínimos para o
pequeno agricultor – sabemos bem como assegurar um fluxo maior de renda para a base
da sociedade – gera bem-estar das famílias, dinamiza as empresas, amplia o emprego e
não gera inflação, como não gerou durante a fase de inclusão produtiva dos anos 2003 a
2013 no Brasil, nem nas outras experiências distributivas como o New Deal americano
ou o Estado de Bem-Estar de numerosos países.
Algumas coisas não podem faltar a ninguém: é um crime termos crianças e adultos
passando fome quando há comida, uma mãe não ter como pagar um medicamento para
os filhos, gente vivendo na rua em situações sub-humanas. O Bolsa Família foi um
imenso progresso, gerou formas eficientes de organização e controle, mas não podemos
ficar com famílias que ora não recebem, ora recebem 600 reais como em 2020, ou cerca
de 300 com diferenciações, ou ainda 400 reais, segundo fluxos e refluxos políticos: o
básico não pode faltar a ninguém, e a universalização do acesso a um mínimo é uma
questão de bom senso econômico, mas também de sentimento de segurança e de
tranquilidade essencial para a vida das famílias. Temos os recursos financeiros,
desenvolvemos todas as tecnologias necessárias de transferência e controle, e sabemos
que é politicamente certo e humanamente justo assegurar um fluxo estável, previsível de
renda para base da sociedade. Em particular, sabemos que num país de imensos recursos
subutilizados, dinamizar a economia pela demanda agregada é fundamental, e os
recursos financeiros retornam com sobras. Sugerir que se as pessoas tiverem uma renda
básica irão “se encostar” é um preconceito intolerável, inclusive desmentido pelos fatos:
trata-se de um piso, (floor, em inglês, é mais explícito), que permite que as pessoas
possam construir suas vidas.
Assegurar os investimentos em políticas sociais
O bem-estar faz famílias não depende apenas de dinheiro no bolso. Como ordem de
grandeza, 60% do equilíbrio econômico das famílias depende de poder pagar contas e
compras, mas os outros 40% dependem do acesso a bens de consumo coletivo:
precisamos de segurança, mas não se compram delegacias. Não se compram escolas,
hospitais, parques necessários ao convívio urbano, rios limpos, ruas arborizadas e tantos
serviços essenciais para uma vida digna. O Teto de Gastos e outras limitações de
prestação de políticas sociais de acesso gratuito universal constituem um contrassenso
econômico. Privatizações na área da saúde resultam na indústria da doença (vejam-se os
custos e ineficiência dos planos privados de saúde), na educação geram elitização e uma
autêntica indústria do diploma, na segurança geram milícias, como vemos tanto no
Brasil como nos Estados Unidos.
Em vez de discursos ideológicos sobre ‘Estado mínimo’ e ‘redução de gastos’, temos de
resgatar a dimensão pública e de acesso universal a serviços que afinal são
absolutamente essenciais, como saúde, educação, segurança, e evidentemente a
sustentabilidade ambiental. Com exceção dos Estados Unidos, os países que funcionam
asseguram o acesso público, gratuito e universal simplesmente porque é
incomparavelmente mais desburocratizado e eficiente, como vimos acima na
comparação dos serviços de saúde entre o Canadá e os Estados Unidos.
Para o Brasil este resgate das políticas sociais através do Estado é particularmente
importante, na medida em que o acesso público, gratuito e universal, constitui uma
poderosa ferramenta de redução das desigualdades, nosso principal entrave estrutural. E
os impactos sistêmicos são imensos, na medida em que uma população mais saudável,
com níveis cada vez mais elevados de educação e conhecimentos científicos, com mais
acesso à cultura, não apenas tem melhor qualidade de vida, como se torna mais
produtiva. Qualificar políticas sociais como “gastos”, e colocar um teto, enquanto
recursos transferidos para os grupos financeiros são qualificados de ‘lucros e
dividendos’ e isentos de impostos, é simplesmente absurdo em termos econômicos,
ainda que compreensível em termos dos interesses das corporações financeiras que
drenam o país. Políticas sociais constituem investimentos de primeira importância para
o nosso futuro.
Ampliar investimentos em infraestruturas
As políticas sociais de acesso público, gratuito e universal são essenciais para o bemestar
das famílias, que é o objetivo do desenvolvimento, mas também para a
produtividade de todo o sistema produtivo: mão de obra saudável, bem formada, riqueza
cultural, segurança, melhores equilíbrios sociais são essenciais para um ambiente
dinâmico de construção do país. Mas igualmente importantes são os investimentos em
infraestruturas, que tanto melhoram o conforto das famílias – com ruas asfaltadas,
sistemas públicos de transporte, infraestruturas de internet, acesso à energia barata,
sistemas de abastecimento de água e de tratamento de esgotos por exemplo – como
melhoram a produtividade das empresas. Neste sentido, o uso de recursos públicos pode
ser fortemente ampliado, pois ao gerar produtividade mais elevada, assegura o retorno
sobre o investimento. O essencial, naturalmente, é investir de maneira planejada de
forma a assegurar a elevação da produtividade sistêmica da economia.
O papel do Estado é fundamental, como se constatou nos investimentos em
infraestrutura tanto na Europa como na China, na Coreia do Sul e outros países: redes
integradas e articuladas de infraestruturas de transporte, de comunicações, de energia e
de água e saneamento asseguram economias externas para o conjunto das atividades
produtivas. As opções guiadas apenas por interesses privados, como no caso dos
transportes no Brasil, levaram a que o transporte das pessoas nas cidades seja em grande
parte individual, que o transporte de carga seja essencialmente por estrada e caminhão,
que o transporte interurbano de pessoas seja por avião – em todos os casos as opções
menos eficientes, comparadas com o transporte público de massa, a cabotagem e redes
ferroviárias para carga, e trens de grande velocidade para a mobilidade regional
interurbana. Ou seja, com planejamento, há imensos ganhos em termos de
produtividade sistêmica a serem resgatados.
Aqui o Brasil tem tanto os recursos financeiros – investimentos que aumentam a
produtividade retornam – como as capacidades técnicas, aliás fragilizadas pelos grupos
corporativos que se apropriaram da política. E a reorganização das infraestruturas no
país pode ser fonte de um conjunto de iniciativas intensivas em mão de obra, políticas
que geram ao mesmo tempo melhor produtividade sistêmica pela qualidade das
infraestruturas, renda para as famílias pelos empregos gerados na construção das
infraestruturas, e dinamização da demanda agregada na base da sociedade.
Políticas públicas de emprego
A imensa massa de recursos humanos subutilizados constitui um desafio e uma
oportunidade: como sugeriu Celso Furtado, quando a produção de uma pessoa é zero,
qualquer atividade é lucro. A Operação Praia Limpa, organizada há décadas pelo
prefeito de Santos David Capistrano representa um exemplo que pode ser multiplicado
por todo o país, segundo as circunstâncias: foi feito um cadastro dos desempregados e
subempregados do município, e com recursos do município foram realizadas obras de
saneamento básico e limpeza das praias, contaminadas pelos esgotos dos prédios,
ilegalmente conectados com galerias pluviais. O resultado foi a geração de milhares de
empregos, com financiamento da prefeitura. O impacto indireto foi o resgate da
balneabilidade nas praias, a dinamização do turismo, e a geração de numerosos
empregos permanentes na hotelaria, restaurantes e outros serviços, por sua vez gerando
recursos para o município. São recursos que se multiplicam.
Considerando as dimensões da subutilização da mão de obra no Brasil, inclusive com
muitos técnicos com curso superior, ficar esperando que “os mercados” resolvam não
faz o mínimo sentido, em particular considerando a penetração de novas tecnologias nos
processos produtivos. O Governo Biden está estudando o Public Employment Program,
a Índia tem programas municipais de projetos públicos intensivos em mão de obra
(National Rural Employment Guarantee Act, 2005) que garantem 100 dias de emprego
pago ao ano. Obras de saneamento básico, por exemplo, que costumam ser intensivas
em mão de obra, geram economias na área da saúde que são da ordem de 4 vezes o
custo do saneamento: são investimentos que geram emprego e multiplicam recursos.
Exemplos nacionais e internacionais não faltam, o drama do desemprego, da
informalidade e da subutilização de recursos humanos, com todo o sofrimento que
geram, pode e precisa ser transformado em produtividade: não são gastos, são
investimentos. Precisamos de políticas públicas de emprego, com as formas de
organização correspondentes, em particular iniciativas municipais, já que a mão de obra
é local. Os 5.570 municípios do país podem se transformar em canteiros de obras, com
infraestruturas, manutenção urbana, arborização, e tantas iniciativas que elevam a
produtividade sistêmica do território.
E há inúmeras oportunidades de geração de emprego ao assegurar apoio de microcrédito
e tecnologia para pequenos produtores, compras governamentais locais, garantia de
preços, melhoria das infraestruturas de transporte e comunicações, generalização do
acesso à internet e outras iniciativas que asseguram melhores condições de iniciativa
empresarial, como se viu em tantos empreendimentos na década 2003-2014, por
exemplo com o programa de microcrédito produtivo e orientado dos bancos públicos.
Trata-se de liberar capacidades produtivas e potenciais imobilizados no quadro das
absurdas políticas de “austeridade”, em que em nome da responsabilidade fiscal se
paralisou o país.
***
Este primeiro eixo, que podemos resumir como de inclusão produtiva, segue a
orientação geral de dinamização do conjunto da economia pela base, ampliando a
demanda de bens e serviços de consumo individual, o acesso a bens e serviços de
consumo coletivo como saúde, educação e segurança, os investimentos em
infraestruturas que melhoram a produtividade geral, e aproveitando o imenso potencial
subutilizado de mão de obra. Tudo isso representa investimentos por parte do Estado,
mas ao dinamizar recursos parados, gera retorno. A demanda na base da sociedade
estimula a produção e investimentos empresariais, o acesso a bens públicos de consumo
coletivo reduz os custos pelas economias de escala e de organização, melhores
infraestruturas reduzem os custos de produção de todos os setores, enquanto o melhor
aproveitamento da mão de obra generaliza tanto o bem-estar das famílias como a
produtividade sistêmica. É um ganha-ganha, o chamado win-win.
2) Políticas de financiamento
A política de inclusão produtiva passa pelo uso inteligente do dinheiro, o que em
economia chamamos de alocação racional de recursos. Vimos acima que o Brasil não é
um país pobre, é um país onde os recursos financeiros são desviados para atividade
improdutivas, as riquezas naturais para exportação (sem pagar impostos), os bens
públicos para grupos privados nacionais internacionais: é a grande farra corporativa que
caracteriza a política pós-2014. Repetindo, o que produzimos anualmente de bens e
serviços, o PIB, de 7,5 trilhões em 2020, para uma população de 214 milhões de
habitantes, representa cerca de 11 mil reais por mês por família de 4 pessoas. Com uma
carga tributária da ordem de 34% do PIB, o Estado dispõe de recursos suficientes para
financiar as políticas necessárias. O problema central é a profunda deformação da
incidência da carga tributária, a agiotagem generalizada no sistema de crédito, e a
política fiscal que privilegia grupos financeiros e intermediários que drenam a economia
em vez de fomentá-la. As três principais mudanças necessárias se referem à política
tributária, política de crédito e política fiscal. Ou seja, de onde vem o dinheiro, como é
intermediado, e em que é investido.
Política tributária
A política tributária no Brasil é injusta, improdutiva e ineficiente. Os debates no
Congresso são intermináveis porque se trata de homens, brancos e ricos que organizam
a cobrança e o uso dos impostos em proveito de si mesmos. O básico é que os países
que funcionam usam os impostos para redistribuir, equilibrando melhor a sociedade. No
Brasil a tributação é utilizada para concentrar ainda mais. Precisamos de tributação
progressiva, não regressiva. A metade dos nossos tributos vem de impostos indiretos,
embutidos nos preços dos produtos que compramos. Como a massa da população gasta
quase tudo o que ganha em compras, os pobres e remediados do país pagam
proporcionalmente muito mais. Somos dos poucos países com este absurdo. O imposto
sobre a renda tem papel reduzido, quando deveria constituir uma ferramenta de redução
das desigualdades: uma alíquota máxima de 27,5% faz com que eu como professor
pague o mesmo que os ricos. Desde 1995 os lucros e dividendos distribuídos são isentos
de impostos, aprofundando as desigualdades. Todos precisamos de serviços públicos, de
políticas sociais, de infraestruturas, e os ricos que afirmam que “evasão fiscal não é
roubo” gostam de ter os seus filhos estudando em universidades públicas, de viver com
ruas asfaltadas. As obrigações devem ser equilibradas. O princípio ético, de redução das
injustiças, é fundamental.
Neste país em que a desigualdade estrutural é o principal entrave ao desenvolvimento,
devemos também pensar os impostos em termos de produtividade da própria tributação.
O ITR, Imposto Territorial Rural, praticamente não é cobrado, o que faz com que
tenhamos imensas áreas de terra parada, em mãos de quem nem a usa nem a deixa usar,
esperando apenas a valorização de longo prazo que resulta da abertura de estradas, da
pressão demográfica e de outros fatores. Cobrar imposto sobre terra parada estimula os
proprietários a trabalhá-la, ou a vendê-la a quem a trabalhe. O capital parado precisa de
impostos para que seja estimulado a voltar a produzir. Isso vale igualmente para o
imposto sobre lucros e dividendos, esse absurdo que gera um universo de aplicações
financeiras improdutivas. Vale também para a Lei Kandir, que isenta de impostos a
produção destinada à exportação. O slogan propagandístico da época, 1996, era
“exportar é o que importa”. Hoje o único setor produtivo que funciona é o de exportação
primária, gerando um neocolonialismo tecnologicamente avançado, mas desastroso para
o país: gera poucos empregos, mas muitos desastres ambientais, e descapitaliza o país
em vez de usar os recursos naturais para financiar o desenvolvimento industrial.
Generalização de fortunas financeiras improdutivas, desastres ambientais e
reprimarização da economia é o resultado do sistema.
Uma terceira deformação do sistema tributário consiste na extrema concentração dos
recursos em Brasília, com acesso muito limitado aos recursos por parte dos governos de
Estados, e em particular dos 5.570 municípios do país. Com 87% de população urbana,
praticamente todos os municípios do país têm hoje núcleos urbanos que permitem uma
descentralização efetiva de acesso aos recursos, permitindo o uso diferenciado em
função das realidades locais. Os poderes locais numa Suécia administram cerca de 70%
dos recursos públicos, no Brasil estamos no nível da ordem de menos de 20%, com
prefeitos viajando para Brasília para buscar uma fatia de emendas parlamentares,
transformando a política em negociata permanente. É importante lembrar que o sistema
integrado informatizado permite hoje seguir os fluxos de recursos, e que os municípios
menores têm se organizado em consórcios intermunicipais que asseguram outro nível de
eficiência. O princípio geral que tem caracterizado os sistemas que funcionam, é que o
dinheiro será utilizado de maneira mais eficiente quando a decisão do seu uso é mais
próxima das comunidades interessadas. A China, segundo Kroeber, é mais
descentralizada ainda do que a Suécia: tem um governo central politicamente forte, mas
as iniciativas e a organização são locais.
A política tributária atual é simplesmente escandalosa, e paralisa o país. É injusta,
improdutiva e ineficiente. Usa-se o argumento de que fazer os ricos pagar impostos os
fará levar o dinheiro para fora. Não precisam fugir: a evasão fiscal hoje já é da ordem de
8% do PIB, e temos centenas de bilhões de dólares em paraísos fiscais. Temos é de
resgatar a política tributária no país, de forma justa e honesta.
Política de crédito
O dinheiro que está nos bancos é nosso, da população e das empresas, não é dos bancos,
instituições que podem ser privadas mas têm de receber uma autorização do Banco
Central, uma carta patente que os autoriza a trabalhar com o dinheiro de terceiros.
Inclusive o dinheiro que financia a dívida pública é nosso dinheiro, dos nossos
impostos. O essencial é que os intermediários financeiros que administram os nossos
recursos têm de fazê-lo de maneira útil para a sociedade. No Brasil, no conjunto, o
sistema de intermediação financeira, em vez de prestar serviços de intermediação e de
promover o fomento da economia, transformou-se em um sistema de drenos financeiros,
travando o consumo das famílias, o investimento empresarial, e o investimento público
através do chamado serviço da dívida. Apresentamos os mecanismos em detalhe no
livro A Era do Capital Improdutivo, em particular no capítulo 12.
O essencial, em termos econômicos, é que intermediando dinheiro dos outros, ou
emitindo papeis e inclusive dinheiro sob forma de dívida, ganha-se mais dinheiro do
que produzindo. Quando os juros, e temos de incluir as inúmeras tarifas e
“reciprocidades” cobrados, são superiores ao rendimento que asseguram aos tomadores
de crédito, o resultado são pessoas e empresas indefinidamente endividadas, que
“rolam” a dívida sem conseguir sair do ciclo de endividamento. Um ponto de referência
simples é utilizar a média dos juros cobrados nos países da OCDE. Como vimos, e para
ter uma ordem de grandeza, os juros sobre o rotativo do cartão no Canadá são de 11%
ao ano, enquanto no Brasil são da ordem de 350% no início de 2022. A agiotagem tem
de voltar a constituir crime, como estava estipulado no artigo 192º da Constituição de
1988. E tem de ser retomada a política adotada pela presidente Dilma em 2013, que era
de utilizar os bancos públicos para oferecer crédito com juros adequados à economia,
forçando assim a ruptura do cartel dos grandes bancos privados e da agiotagem que
permite. Isso envolve também os crediários, que no Brasil geram lucros fabulosos para
grandes redes comerciais que se tornaram mais financiadores do que intermediários
comerciais.
As medidas, aqui também, são conhecidas, o Banco Central tem de voltar a ter um papel
regulador do sistema de crédito, os bancos têm de voltar a servir a sociedade cujo
dinheiro administram, e não apenas se servirem. Adotar medidas próximas da média da
OCDE não só assegura essa funcionalidade, como evita fluxos especulativos com o
mercado financeiro externo. As limitações são de ordem política, não técnica ou
financeira. Tanto acionistas nacionais como internacionais se acostumaram a drenar a
economia brasileira, gerando fortunas improdutivas em volumes espantosos, e qualquer
mexida no rentismo financeiro que se instalou nos anos 1990 gera oposição violenta
entre as elites, como se viu com a redução das taxas de juros e taxação de lucros
especulativos (carry trade) adotadas pelo governo Dilma, e que originou o golpe.
Grande parte da impunidade com a qual grupos financeiros drenam a economia resulta
da pouca compreensão dos mecanismos financeiros por parte da população, como se vê
com o absurdo da elevação da taxa Selic com o pretexto de combater a inflação,
justificação sem sentido numa inflação que não é de demanda, ou com a apresentação
de juros ao mês, quando o resto do mundo trabalha com taxas anuais. O sistema
financeiro precisa se tornar transparente, e o Banco Central tem um papel importante a
desempenhar e que precisa ser resgatado. Os meios de comunicação comerciais jogam a
culpa nos tomadores de crédito, dizendo que precisam de educação financeira, quando
não há educação financeira que resolva frente ao cartel da agiotagem.
Alocação racional de recursos: política fiscal
O problema principal do país, em termos de financiamento, não é a falta de recursos,
mas a sua alocação que privilegia ganhos financeiros improdutivos em vez de fomentar
a economia. Como vimos, uma parte da dinâmica a ser corrigida é a política tributária,
desonerando o consumo e atividades produtivas e cobrando impostos sobre as grandes
fortunas e usos improdutivos. De forma semelhante, a política de crédito deve favorecer
o financiamento de atividades produtivas. A política fiscal visa racionalizar o uso do
dinheiro público. No conjunto, o financiamento público deve buscar os efeitos
multiplicadores dos recursos. Como vimos acima, assegurar a renda básica gera retorno
superior ao que o governo repassa à base da sociedade. Financiar saneamento básico
gera economias ao reduzir os custos com doenças. Financiar o apoio à agricultura
familiar assegura efeitos produtivos que também multiplicam os recursos. As políticas
de seguridade social geram bem-estar e demanda na base da sociedade.
O Brasil adquiriu, através em particular da Caixa Econômica Federal e do Banco do
Brasil, mas também dos bancos públicos regionais, uma grande capacidade de gestão
produtiva de recursos financeiros. A partir de 2015, a prioridade passou a ser o aumento
do lucro dos bancos, e consequentemente dos acionistas, e não o efeito multiplicador de
atividades produtivas. Em termos gerais, em vez de apontar o déficit e propor redução
de “gastos”, em nome da “austeridade”, o governo precisa orientar os recursos para
dinamizar a base produtiva subutilizada, reduzindo o déficit através da expansão da base
produtiva. Isso envolve priorizar a inclusão produtiva que vimos acima, com renda
básica, expansão das políticas sociais e dos investimentos em infraestruturas e as
políticas de geração de emprego.
***
O problema básico não é “de onde” vêm os recursos, que são dos impostos, e podem ser
de conversão das reservas cambiais, do endividamento ou até de emissão monetária
pública, e sim “para onde” vão: um bom investimento gera retorno e equilibra as contas.
Não há como não ver a pilhagem generalizada dos recursos públicos que gerou a
situação de se vive no país em 2022, com paralisia econômica, déficit público elevado,
inflação crescente, taxas absurdas de juros, entrega de recursos naturais, inclusive do
petróleo, tão importante para financiar o desenvolvimento. A convergência dos absurdos
de uma tributação regressiva, de agiotagem nas políticas de crédito, e de uma política
fiscal que privilegia corporações financeiras em vez do fomento da economia, gera uma
catástrofe com dimensões simultaneamente econômicas, políticas e sociais.
3) Racionalização da gestão: o processo decisório
Temos os recursos financeiros e tecnológicos, sabemos o que deve ser feito – em nível
global trata-se de buscar uma sociedade economicamente viável, socialmente justa e
ambientalmente sustentável – e inclusive temos os detalhamentos nos 17 Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável, 169 metas e 230 indicadores. Conhecemos os nossos
dramas, a fome, as insuficiências e desigualdade na educação, os dramas da saúde, a
destruição ambiental, o caos financeiro e tantos problemas que enfrentamos.
Sistematizar, quantificar e divulgar os nossos problemas é fundamental, mas quando
temos uma convergência de tantas dinâmicas críticas, temos de pensar não só nos
dramas, mas nos processos de gestão que os geram, ou que impedem que sejam
enfrentados. Com simplificações ideológicas absurdas como esperar que os mercados
resolvam, Estado mínimo, privatizações, e sobre tudo a priorização generalizada de
ganhos financeiros, temos uma crise do próprio processo de solução de problemas. A
impotência institucional que assola o país tem de ser enfrentada, gerando a governança
necessária, racionalizando o processo decisório da sociedade.
A articulação do Estado, das empresas e da sociedade civil
Os mercados sozinhos não resolvem. Onde em outra era tínhamos inúmeras empresas
que se enfrentavam no mercado para prestar serviços adequados, hoje temos gigantes
corporativos, plataformas que controlam as finanças, as comunicações, a informação e
inclusive os comportamentos privados e têm peso decisivo no parlamento, no executivo
e em grande parte no judiciário. A apropriação privada das políticas públicas constitui
um desafio central, e significa que perdemos tanto o poder regulador da livre
concorrência empresarial – que subsiste apenas em áreas da pequena e média empresa –
como os sistemas de planejamento de médio e longo prazo que tiveram e têm papel
importante tanto na União Europeia como evidentemente na China e outros países. O
mundo globalizado e financeirizado perdeu os seus dois principais mecanismos
reguladores, a concorrência empresarial e o planejamento econômico e social.
Somos sociedades demasiado complexas para sermos geridos por simplificações
ideológicas como o neoliberalismo. No estudo mencionado O Pão Nosso de Cada Dia:
opções econômicas para sair da crise, propusemos um conjunto de soluções baseadas
não no maniqueísmo ideológico, mas no acompanhamento do que funciona, em que
condições e com que formas de organização, nos mais diversos setores: produzir carros,
camisetas e tomates pode ser regulado no quadro da propriedade privada e com
mecanismos de mercado, mas as grandes infraestruturas, como transportes, energia,
comunicações e água e saneamento precisam de visão sistêmica, planejamento de longo
prazo e participação decisiva do Estado. Outra área vital da economia, que hoje se
tornou dominante, que são os serviços de intermediação como finanças, comércio de
commodities, intermediação jurídica e semelhantes – os cobradores de pedágio de
qualquer atividade econômica – precisam de sistemas de regulação e em particular de
setores estatais para reduzir a força da cartelização: hoje a economia é dominada por
intermediários que “facilitam”, mas na realidade são atravessadores. E uma quarta área
que se agigantou, a das políticas sociais, com saúde, educação, segurança e semelhantes,
onde funciona, é assegurada sob forma de políticas públicas, gratuitas e de acesso
universal.
Em outros termos, ao olharmos como e onde funcionam de forma adequada as diversas
áreas de atividade, a educação na Finlândia, as políticas urbanas na Dinamarca, o
sistema financeiro na China, na Alemanha e na Suécia, o sistema de saúde no Canadá, a
conclusão a que chegamos é que não se trata de Estado máximo ou mínimo, mas do
Estado dirigir os setores em que a visão pública e sistêmica é essencial. As empresas
produtivas podem sim se regular por mecanismos de mercado, dentro de um marco
jurídico que controle a formação de monopólios e os impactos ambientais. As grandes
redes de infraestruturas precisam de visão de longo prazo, objetivos sistêmicos e de
planejamento público, com forte participação do Estado. As plataformas de
intermediação financeira e de comunicação precisam ser confrontadas fortemente com
regulação, pois tendem naturalmente a formar monopólios de demanda. As políticas
sociais exigem formas descentralizadas e participativas de gestão, já que se trata de
redes capilares de serviços que devem chegar a cada casa, a cada criança, a cada
comunidade. Ou seja, em vez de simplificações ideológicas, precisamos optar pelas
formas de organização e processos decisórios que melhor funcionem segundo as
diferentes áreas de atividade. Podemos chamar isso de sistemas mistos e articulados de
gestão. Não se trata de simplificações ideológicas, e sim da aplicação do bom senso.
Privatizar a Petrobrás e submeter o conjunto do país às oscilações dos mercados
internacionais, quando temos a matéria prima e a cadeia técnica completa nas nossas
mãos é compreensível pelos interesses envolvidos, mas é um desastre para o país, e uma
idiotice em termos de gestão.
Gestão descentralizada em rede
As formas atualizadas de gestão se deslocaram tanto no setor público como no setor
privado. Grandes corporações privadas com unidades em numerosos países e em vários
setores trabalham com sistemas descentralizados, e articulados em rede, para otimizar o
processo decisório. No caso do Brasil, com o gigantismo territorial, diversidade regional
e os 5.570 municípios, o sistema centralizado atual, em que a alocação de recursos
termina ficando essencialmente em Brasília, é irracional tanto para a base da sociedade,
que não dispõe dos recursos correspondentes aos encargos, como para o governo
central, atolado em micro negociações. O estudo de Marcélio Uchôa, O que os gestores
públicos municipais precisam saber, (2019), mostra em particular a impotência dos
pequenos e médios municípios. A descentralização de recursos, acompanhada de uma
gestão em rede permitirá aos diversos níveis governamentais acompanhar em detalhe os
fluxos financeiros e as realizações, dependendo naturalmente de se assegurar a inclusão
digital generalizada, condição prévia para qualquer gestão racional de recursos, com os
devidos controles.
Para os municípios, como vimos acima relativamente à subutilização das capacidades de
gestão, é essencial a descentralização de recursos, a possibilidade de organizar finanças
de proximidade, com bancos públicos municipais (como na Alemanha, na China, na
Califórnia e em numerosos outros casos), bancos comunitários de desenvolvimento, e
evidentemente o aumento de transferências previsíveis, permitindo um planejamento
local adequado. A Constituição de 1988 é neste plano desequilibrada, com transferência
de mais encargos para os municípios, mas não dos recursos correspondentes, exigindo
um pacto federativo reformulado. É importante reiterar que o sistema em rede
informatizado permite que o conjunto dos fluxos seja acompanhado nos diversos níveis
de governo, assegurando ao mesmo tempo o controle necessário e a flexibilidade da
gestão em função da diversidade dos municípios e das regiões. Conforme mencionado
acima, o relatório de pesquisa Política Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Local,
(2009) sistematiza em 8 setores e 89 propostas o que poderia ser uma racionalização do
processo decisório a partir da unidade básica da gestão pública que é o município.
Inclusão digital
Com o deslocamento do conjunto das atividades para a economia imaterial, a inclusão
digital de qualidade, a conectividade generalizada de todos os agentes econômicos e
sociais, e inclusive dos indivíduos, tornaram-se fundamentais. Em termos de custobenefício,
a inclusão digital constitui a iniciativa de maior efeito multiplicador, ao
aumentar radicalmente as opções de que dispõem tanto as pessoas físicas, como as
pessoas jurídicas e os diversos níveis de administração pública. No Brasil é um recurso
amplamente subutilizado, como se constata nos relatórios do Comité Gestor da Internet
(CGI), com um quarto da população excluída, e uma parcela limitada da população com
acesso pleno de qualidade. A exclusão, ou inclusão digital apenas parcial, aprofundam a
desigualdade: como pode estudar a criança sem acesso à internet?
Ainda que seja associada a atividades econômicas de ponta, hoje a inclusão digital e o
acesso a tecnologias em geral são vitais para qualquer pequeno produtor. O pequeno
agricultor precisa de inseminação artificial, de análise de solo, de informação
meteorológica, de informação de preços, de consulta com potenciais clientes: a
conectividade rompe o isolamento, permite inclusive romper os pedágios de
atravessadores ao facilitar a venda da produção ao consumidor final. É preciso lembrar
que a rede de transportes permite articular os agentes econômicos do território, mas
envolve custos muito elevados. A conectividade em rede tem custos baixíssimos, pois
as ondas eletromagnéticas são da natureza, veículo natural de articulação de todas as
atividades. Os preços que pagamos pelo acesso não resultam dos custos, e sim dos
lucros elevados dos oligopólios que cobram pedágios sobre canais de transmissão que
são da natureza. Tal como as redes de abastecimento de água e de energia, o acesso de
alto nível e generalizado pode ser assegurado como serviço público, cobrindo
essencialmente os custos.
Iniciativas pioneiras como Piraí Digital, que assegurou a cobertura de sinal internet em
todo o território municipal, com custos baixíssimos, mostram como uma economia pode
ser dinamizada ao se liberar o acesso à comunicação, ao conhecimento, às articulações
em rede em todas as áreas de atividade. As experiências do Quênia e inúmeros outros
mostram como o contato direto entre agentes econômicos permite escapar aos custos
impostos pelos bancos e outros intermediários financeiros. Na era da economia e da
sociedade do conhecimento, o atraso que o Brasil está demonstrando na base técnica e
no processo de inclusão digital é catastrófico. A recusa do ministro Paulo Guedes, em
2021, de autorizar o financiamento de 3,5 bilhões de reais para assegurar acesso à
internet em escolas públicas mostra uma incompreensão radical das prioridades e das
dimensões científico-tecnológicas do desenvolvimento. Na realidade, com o
conhecimento se tornando o principal fator de produção das economias modernas,
assegurar sistemas performantes de acesso para todos tornou-se essencial.
***
É importante entender que a gestão interna das grandes corporações como os bancos, os
produtores e exportadores de bens primários (agroindústria, mineração) é hoje muito
moderna e avançada, mas simplesmente usa o país para maximizar lucros, num
ambiente descontrolado e que abdicou de qualquer soberania. Não há nenhum problema
em exportar petróleo, se os impostos cobrados e os recursos angariados servem para
financiar a industrialização e avanços científicos. A gestão pública, no entanto, está na
pré-história, o que permite precisamente que as corporações se tornem drenos das
riquezas em vez de contribuírem para o desenvolvimento. Os países que funcionam,
como vimos, asseguram um equilíbrio razoável entre Estado, empresas (e em particular
os gigantes transnacionais) e os diversos níveis de organização da sociedade civil, em
particular sindicatos e outros tipos de associações. No Brasil os dramas como a fome, a
desindustrialização, a reprimarização, o atraso científico e educacional e outras
deformações, são bastante estudados e conhecidos, mas precisamos voltar a atenção
para o processo decisório que permitiu e continua permitindo o divórcio entre os
interesses privados de curto prazo, inclusive internacionais, e os interesses da nação.
Precisamos de um choque de gestão moderna tanto na administração pública como nos
seus relacionamentos com os diversos agentes econômicos e sociais. Reinventar o
governo não seria uma expressão exagerada.
4) As bases políticas: democratização
Não há como não se dar conta de que estamos vivendo numa democracia de faz-deconta.
O governo das oligarquias, articuladas com interesses internos e internacionais,
que é o que tem caracterizado a nossa política, com raros intervalos, deforma o
desenvolvimento na medida em que favorece a auto-reprodução de privilégios, e
reproduz a fratura social do país. O mesmo processo favorece a erosão da soberania do
país, já que os grupos efetivamente no poder são hoje essencialmente associados com os
gigantes financeiros internacionais, os traders de comercialização de commodities, os
interesses das grandes potências por acesso a matérias primas baratas, sem consideração
para os dramas sociais, econômicos e ambientais gerados. O alinhamento com interesses
externos rompe o equilíbrio necessário entre as pressões externas e as necessidades de
longo prazo do nosso desenvolvimento. Nunca haverá soberania total neste mundo hoje
interdependente, mas se não houver um governo capaz de negociar os interesses do
Brasil, o país será simplesmente usado, como está sendo desde o golpe. A
democratização é vital para o conjunto dos nossos objetivos.
Democracia participativa
A democracia não se sustenta apenas no voto, necessita de formas democráticas de
consulta regular, acompanhamento das iniciativas, participação nas diferentes
iniciativas. Como vimos, isso envolve uma forte descentralização do processo decisório,
em particular para o nível municipal, que é onde a população conhece os problemas, os
personagens políticos, os desafios a enfrentar. Isso pode perfeitamente coexistir com
formas modernas de controle financeiro e de resultados, no quadro da gestão
descentralizada em rede que vimos acima. Não se trata de ideais, é simplesmente muito
mais eficiente cada cidade poder resolver os problemas do seu cotidiano, a formação de
um cinturão verde horti-fruti-granjeiro, políticas de emprego, melhoria de
infraestruturas e assim por diante. As escolas, colégios e faculdades podem hoje se
articular em níveis regionais para o intercâmbio científico. Isso inclusive melhora a
gestão no nível do governo central, que pode se concentrar nas questões mais amplas.
As tecnologias modernas apropriadas por gigantes corporativos geraram um sistema de
centralização de poder e de concentração de riqueza intolerável, desastroso em termos
econômicos, sociais e ambientais. A sua democratização e generalização, perfeitamente
possível em termos técnicos, e com baixos custos, pode abrir espaço para uma
reapropriação das iniciativas pela base. Na era do conhecimento, e com as tecnologias
disponíveis, a ideia de uma sociedade descentralizada e participativa se torna
simplesmente realista, como vemos em numerosos países. O exemplo do bairro da Casa
Verde, em São Paulo, em que uma plataforma colaborativa permite que as empresas,
clubes, escolas de samba e até famílias se articulem no próprio bairro em função das
suas necessidades e projetos, mostra o espaço de oportunidades que se abrem.74
Não estamos mais na pré-história em que uma minoria tinha acesso à educação e aos
conhecimentos gerais. Em toda parte, hoje, há gente escolarizada, e a conectividade
global permite interações colaborativas. É a base de um sistema democrático muito mais
participativo que precisamos assegurar, fazendo contrapeso ao sistema centralizado de
interesses das grandes corporações e das suas articulações políticas. É fundamental
entender que quando o principal fator de produção é o conhecimento, imaterial e,
portanto, passível de reprodução infinita sem custos adicionais, abrem-se imensas
oportunidades em que a colaboração é mais eficiente do que a competição. De certa
maneira é a base tecnológica da transformação política.
O resgate da dignidade humana
A desigualdade medida em termos econômicos, em particular de renda e de riqueza,
continua fundamental. Mas as suas manifestações se dão em complexas dinâmicas
sociais, em que a desigualdade econômica se articula com a desigualdade de gênero, de
raça, de sexo, de regiões, ou até de bairros. A desigualdade tem de ser analisada e
enfrentada no plural, tal como as Nações Unidas hoje trabalham com o conceito de
pobreza multidimensional. O conceito mais amplo de resgate da dignidade humana, que
envolve desde assegurar o piso econômico para todos, até o enfrentamento das mais
variadas formas de prepotência, de humilhações que atingem a maior parte da
população, reflete melhor o impacto sistêmico das várias formas de desigualdade. As
contradições de classe continuam essenciais, mas as suas ramificações e manifestações
diferenciadas vão muito além das dimensões econômicas. Temos de organizar a política
na linha da convergência das diversas formas de combate à discriminação.
A lei de cotas adotada no Brasil foi um sucesso impressionante, em particular porque a
inclusão por meio da educação e do acesso ao conhecimento em geral tem impactos
estruturais e de longo prazo, e vai ser cada vez mais determinante, à medida em que a
dimensão do conhecimento nos processos produtivos segue se tornarndo dominante.
Vimos no caso das comunidades organizadas pelo MST como a inclusão produtiva
precisa ser acompanhada de uma mudança cultural profunda no respeito mútuo, no
sentimento de pertencer a uma construção social mais ampla. Inúmeras atividades
econômicas, como vimos com as iniciativas de economia solidária promovidas em
particular por Paul Singer, e os avanços dos sistemas cooperativos, contribuem para
gerar dinâmicas ao mesmo tempo produtivas e colaborativas, em que as dimensões
econômica, política, social e cultural se encontram e se tornam sinérgicas.
O resgate da relação com a natureza
Até há relativamente pouco tempo, os desafios ambientais eram defendidos por
minorias informadas, mas hoje, com a dimensão das catástrofes, cada vez mais gente se
convence de que não é questão de baleias e de ursos pandas, mas da nossa
sobrevivência. É sem dúvida mais fácil mobilizar as pessoas em torno a problemas de
curto prazo, mas o cenário mudou, e muitos, em particular na nova geração, já
entenderam e se mobilizam, como constatamos nos movimentos no Chile e em muitos
outros países. Trata-se de uma mudança cultural profunda, que abre a possibilidade de
mobilizar as pessoas não só em torno aos seus desafios imediatos, mas em torno a
desafios sistêmicos e de médio e longo prazo. Estamos indo muito além dos “verdes”. É
um desafio da humanidade.
O conceito básico de uma sociedade economicamente viável, mas também socialmente
justa e ambientalmente sustentável, muito presente em nível internacional, faz parte
desta dimensão mais ampla da mobilização da sociedade. Chega de barbárie. Por um
lado, isso envolve capacidade de regulação por parte do Estado, para coibir dramas
como Mariana, queima das florestas e do cerrado, agrotóxicos em todos os alimentos e
nos rios e assim por diante. Por outro lado, envolve o imenso potencial de políticas
públicas de emprego, com saneamento básico, arborização urbana, e tantas
possibilidades, no nível dos municípios, com cofinanciamento dos Estados e da
Federação, gerando ao mesmo tempo emprego, renda e vida mais saudável na base da
sociedade. Igualmente importante é o fato que o país aderir a políticas ambientais
coerentes é hoje de primeira importância para as relações internacionais e a abertura de
mercados.
Uma civilização baseada no conhecimento e na colaboração
É sonhar demais com uma mudança profunda de valores, da própria cultura de
competição, de exploração, de guerra de todos contra todos? Na realidade, trata-se de
evitar o pesadelo. Hoje temos uma explosão de estudos que mostram que estamos
caminhando rapidamente para uma destruição da nossa própria civilização, tanto pelos
dramas ambientais – nós somos parte da natureza que estamos destruindo – quanto pela
desigualdade explosiva que nos torna ingovernáveis, e pela desarticulação deste
pequeno avanço que tivemos ao longo dos últimos séculos, o conceito de uma sociedade
democrática. Os desafios foram bem resumidos por David Wallace-Wells, no seu A
Terra Inabitável, e hoje temos um sem número de estudos que detalham o passo a
passo e as projeções da catástrofe em câmara lente que enfrentamos. A cultura da guerra
de todos contra todos, com as tecnologias modernas, gera uma dinâmica simplesmente
destrutiva. Não se trata de ‘destrutiva’ no sentido acadêmico, ou parlamentar, e sim de
destrutiva no sentido físico, dos nossos filhos e netos, quando não de nós mesmos na
pandemia que se espraiou pelo planeta. Temos de aprender a colaborar, e a colocar
orelhas de asnos, como já se fez com maus alunos nas escolas, nos bilionários que se
lambuzam de dinheiro e poder e geram o caos.
A diferenciação de interesses pontuais e interesses difusos ajuda muito na compreensão
dos dilemas. A maioria da população brasileira apoia sem dúvida a preservação da
Amazônia, mas são interesses difusos, fragmentados na consciência de milhões de
pessoas, enquanto os interesses individualizados das corporações que lucram com a
madeira, a soja, a carne e os minérios se articulam para comprar políticos, mudar as leis
ou promover golpes se necessário: são interesses organizados que se tornam muito mais
poderosos do que os interesses difusos da humanidade, e inclusive ampliam a sua base
de apoio com o pagamento de dividendos a tantos acionistas. Encontramos esta
dinâmica na contaminação planetária dos aquíferos, rios e mares, na ampliação da
mudança climática, na destruição da biodiversidade, na redução de centenas de milhões
de pessoas ao desespero e à fome. The business of business is business, justificava
Milton Friedman.
Hoje temos as estatísticas, mas não o poder de mudá-las. A OMS apresenta em detalhe
os 8 milhões de mortes prematuras causadas pelo cigarro, 7 milhões de fumantes e 1,2
milhão por exposição passiva. Morrem cerca de 4,2 milhões por poluição do ar, 3,6
milhões por poluição da água. Total 15,8 milhões por ano, com causas conhecidas, e
evitáveis. A obesidade, causada em grande parte por alimentos industrializados, causa
mais 5 milhões de mortes prematuras. O câncer, em boa parte causado por produtos
químicos, gera 10 milhões de mortes anuais, e hoje atinge até jovens e crianças. As
empresas que causam essas mortes conhecem perfeitamente os números. Mas a
prioridade é obter mais lucros e dividendos para os acionistas, grandes grupos
financeiros. Todos eles assinam os princípios de ESG. Lembram quantos anos levou e
que batalha foi tirar o chumbo dos combustíveis? Ou para as empresas de tabaco
reconhecerem que sabiam da ligação do cigarro com câncer? Os que contaminam a água
com agrotóxicos são desinformados? Os que liquidam a vida nos oceanos não
conhecem os números?
***
Temos de organizar a inclusão produtiva, de assegurar as bases financeiras
correspondentes, de atualizar as formas de gestão para que as políticas funcionem, e de
ampliar as bases políticas para que essas mudanças sejam possíveis. Nesse último
ponto, somos por toda parte herdeiros de simplificações ideológicas, em particular na
economia, em que justificamos a barbárie agitando o perigo de uma barbárie ainda
maior. Eric Hobsbawm com razão escreveu que as teorias econômicas dos neoclássicos
passaram a ser defendidas como uma teologia. O essencial é que as populações, as
organizações da sociedade civil, as pequenas e médias empresas, o conjunto dos agentes
sociais, precisam ter uma presença muito mais ativa e cotidiana na gestão dos interesses
do conjunto da sociedade. Frente à força das grandes corporações mundiais, teremos
democracia participativa ou não teremos democracia. E em particular, precisamos
resgatar mais Paulo Freire, Franz Fanon e tantos indignados do planeta que buscaram
uma vida digna para todos. Não hesitaria em dizer que precisamos de um novo
humanismo, e das formas correspondentes de organização de como a sociedade decide
os seus rumos.
REALISMO E ESPERANÇAS
Voltemos ao principal: conhecemos os dramas e os desafios, sabemos o que deve ser
feito, temos de sobra os recursos financeiros e tecnológicos necessários para assegurar a
todos uma vida digna e confortável no quadro de uma sociedade sustentável, sem
precisar impor um igualitarismo opressivo. Até quando aceitaremos as narrativas
absurdas difundidas pela mídia comercial, financiada por corporações, quando
precisamos de uma sociedade informada e de uma governança responsável? Estamos à
beira de decisões de não-retorno. No filme Não Olhe para Cima, o personagem desaba
em choro na entrevista na TV comercial, por sentimento de impotência e incompreensão
diante do que ele sabe que são fatos. George Monbiot, que não é personagem fictício,
mas um dos melhores analistas da realidade atual, colunista do The Guardian, conta que
teve uma semelhante e humilhante crise de choro em entrevista na BBC: até quando
vamos manter o faz-de-conta, até quando toleraremos um sistema que está nos
destruindo?
As vacinas contra a pandemia e suas sucessivas variantes foram desenvolvidas por
empresas privadas ou instituições públicas em diversos países, sobre a base de
conhecimentos do genoma construídos por milhares de instituições públicas e privadas,
mas a sua generalização é radicalmente travada por interesses corporativos. Privar
bilhões de pessoas do acesso vai favorecer o aparecimento de novas cepas, e vender a
vacina a preços elevados mantém o drama, ainda que gere imensas fortunas privadas. É
grave, mas apenas mais um exemplo: a deformação é sistêmica. A reversão da
destruição da camada de ozônio, conseguida por meio de colaboração internacional,
oferece um raro exemplo de choque de bom-senso planetário. Hoje precisamos construir
este bom-senso de maneira generalizada, com uma sociedade efetivamente informada, e
uma política voltada para o bem-comum, e não apenas destinada a assegurar um marco
institucional confortável para a acumulação de fortunas às custas do futuro de todos nós.
O Nosso Futuro Comum, no final dos anos 1980, já apontava os rumos. Hoje temos os
Objetivos do Desenvolvimento sustentável, muitas reuniões e comissões.
O tempo urge, e nos horizontes políticos concretos de cada país, temos de inserir com
força não só os desafios imediatos, como a visão sistêmica de uma sociedade civilizada.
No título do presente estudo, colocamos “a exploração, as narrativas e o porrete”. Pois
ao estudar a história da humanidade, sempre houve um mix desses três elementos. A
escravidão exigia menos narrativa e mais porrete, e a exploração era mais evidente.
Mesmo assim conseguiam suficientes narrativas para acalmar os eventuais problemas de
consciência. Usou-se Darwin para justificar os comportamentos mais desumanos. Hoje,
com o poder da invasão da nossa intimidade, e algoritmos que permitem adequar as
narrativas às nossas personalidades individualizadas, além da invasão incessante do
nosso espaço consciente com mensagens tanto racionais como absurdas, gerou-se um
tipo de neblina cerebral e de sentimento de impotência. As pessoas desorientadas se
agarram a simplificações.
Os rumos não são promissores. Tenho chamado isso de impotência institucional. Todos
sabemos que temos de mudar de rumos, mas muito pouco acontece. Os computadores
das corporações que definem onde serão aplicadas imensas massas de recursos
financeiros seguem os algoritmos de maximização de retorno no mais curto prazo,
enquanto os departamentos de relações públicas lançam declarações sobre a importância
do ESG. É um universo de faz de conta. O que temos a fazer é conscientizar, batalhar
por mudanças, por um choque de bom-senso. O mais provável, no entanto, é que só com
o aprofundamento da catástrofe planetária a humanidade despertará para realmente
mudar as formas como a sociedade se administra. Foi o choque profunda da tragédia da
II Guerra Mundial que gerou a força política para criar a ONU e instituições de
regulação internacional, hoje ultrapassadas ou inoperantes. Até quando durará esta
observação passiva da catástrofe em câmara lenta? Ficar repetindo que “os mercados”
vão resolver é domínio de idiotas, e de pessoas com interesses. Frequentemente ambos.
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