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O Processo
O documentário acompanha a crise política que afeta o Brasil desde 2013 sem nenhum tipo de abordagem direta, como entrevistas ou intervenções nos acontecimentos. A diretora Maria Augusta Ramos passou meses no Planalto e no Congresso Nacional captando imagens sobre votações e discussões que culminaram com a destituição da presidenta Dilma Rousseff do cargo.
Ao passar meses nos bastidores do Congresso Nacional, acompanhando ao vivo os trâmites que levaram ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a cineasta Maria Augusta Ramos assumiu um grande risco. Primeiro, por ser impossível o distanciamento em relação ao tema, e por não saber onde a história se concluiria. Afinal, os eventos de 2016 trazem consequências no Brasil até hoje, e as imagens daquela época adquiriram novo significado em 2018, com Michel Temer no poder, às vésperas de uma nova eleição presidencial (pelo menos, assim se espera). Existe uma diferença fundamental no ato de assistir hoje àqueles eventos captados “ao vivo”, conhecendo muito bem o desenlace.
Além disso, no momento polarizado que o país atravessa desde 2013, o projeto será facilmente instrumentalizado por uma parcela do público, que vai considerá-lo genial ou execrável apenas por seu posicionamento político. Este pode se tornar facilmente o “filme da Dilma”, embora discuta um sistema que ultrapassa amplamente a figura da ex-presidenta. Ou seja, ele pode efetuar um grande esforço de comunicação para pessoas que não estão interessadas em dialogar. É possível, no caso de filmes como este especificamente, pregar para convertidos, conversar apenas com as pessoas que já compartilham da tese de que o julgamento constituiu um golpe parlamentar concebido como retaliação pelas medidas de Dilma contrárias a grandes nomes do poder.
É importante avisar que Dilma Rousseff não é a personagem principal de O Processo. Figuras políticas como José Eduardo Cardozo, Gleisi Hoffmann, Lindbergh Farias e Janaína Paschoal, por exemplo, ocupam muito mais tempo de tela. Deste modo, Maria Augusta Ramos impede que o filme gire em torno de uma única personalidade. O roteiro dá um passo atrás e decide estudar o estado da nossa configuração política atual, para compreender de que maneira os eventos de 2016 puderam se produzir. Dilma é a conclusão de um mecanismo, não o seu meio. Antes disso, é preciso compreender a Lava Jato, a queda de Eduardo Cunha, o “grande pacto nacional, com o Supremo, com tudo”, o papel desempenhado por Aécio Neves, a pressão de Michel Temer, os votos dos congressistas “em nome da família, da minha esposa e do meu time de futebol” e muitos outros fatores. Estes episódios desfilam em tela, em ordem cronológica, com letreiros informativos.
A diretora não facilita a vida do espectador. Com 137 minutos de duração, o projeto é extenso, verborrágico, repleto de termos técnicos e jurídicos. Ao invés de se concentrar na histeria coletiva das ruas ou na condenação prévia da mídia hegemônica, Maria Augusta Ramos permanece nos corredores do Senado, escutando ambos os lados, vendo cada equipe discutir embargos infringentes, metas orçamentárias, emendas parlamentares, ajustes fiscais, porcentagens, datas, interpretações de leis etc. Não há cartelas com o nome dos políticos nem seus partidos: supõe-se que o espectador já conheça o posicionamento de Anastasia, Lewandowski, Kátia Abreu, Jandira Feghali, Requião, Rodrigo Maia etc.
O andamento é frio e racional: O Processo tenta desmontar um a um os argumentos legais apresentados para a destituição da presidenta. A própria Janaína Paschoal, fervorosa porta-voz da oposição, afirma que Dilma cairia pela vontade das ruas, e não pelas leis. O documentário visa demonstrar que, pelo ponto de vista jurídico, não houve crime de responsabilidade e, portanto, não houve motivo para o impeachment. Com o acúmulo de discussões, são raros os momentos de respiro além de cortes secos para uma tela preta, ou curtos inserts dos arredores do Planalto pela manhã.
A cineasta não busca grandes sacadas de montagem, nem a criação de efeitos poéticos, metafóricos, ou ainda a captação de imagens externas ao universo político. O espectador fica focado da primeira à última cena nos mesmos personagens, os mesmos corredores, criando uma exaustão pertinente ao circo de absurdos. A propósito, um político evoca “O Processo”, de Franz Kafka, no qual o personagem principal também é condenado sem crimes, num julgamento orquestrado e sem possibilidade de defesa justa.
Com este projeto, Maria Augusta Ramos não traz revelações bombásticas sobre os bastidores da política nacional, nem apresenta imagens esteticamente deslumbrantes. Sua preocupação se encontra na articulação de uma quantidade imensa de informações de modo lógico, claro, e capaz de retratar ambos os lados sem caricaturar a oposição – embora tenha um posicionamento crítico evidente. Este é um cinema político assumido como tal, de vocação progressiva, libertária, de esquerda. Acima de tudo, é um cinema que acredita no valor da argumentação, elemento cada vez mais raro na sociedade e na mídia atualmente.
Filme visto no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2018.
Dirigido por Maria Augusta Ramos.
Assistir a O Processo é reviver um pesadelo – ou uma série deles. Dirigido por Maria Augusta Ramos, o documentário é um trabalho que, como os anteriores da cineasta (a excelente trilogia sobre a Justiça brasileira e o ótimo Futuro Junho), evita a editorialização excessiva, buscando retratar com o menor número possível de intromissões toda a trajetória legal do “impeachment” no Senado, desde o recebimento da denúncia vinda da Câmara dos Deputados até a votação final que removeu a presidenta Dilma Rousseff do cargo. Neste sentido, uma diretora com o estilo de Ramos representa a opção ideal para o projeto, que já traz muitos discursos dos personagens (de ambos os lados) para ter que incluir também os da cineasta.
Aliás, é um reflexo da polarização absoluta do Brasil contemporâneo que só o fato de eu ter escrito “presidenta” e colocado “impeachment” entre aspas seja o suficiente para que qualquer um saiba imediatamente minha posição sobre os eventos retratados no filme – e, portanto, não creio que O Processo vá mudar muitas mentes, o que é resultado direto do esforço por objetividade feito pela realizadora (a projeção tem início com o “muro” construído em Brasília para separar manifestantes pró e anti-Dilma e que já gerou seu próprio documentário, o ótimo O Muro). Sim, os fatos estão no filme e são inegáveis, mas se há algo em que o Brasil vem se especializando é a negação da realidade, que transforma a perda de direitos em “avanços” e uma intervenção militar em um estado em “agenda alternativa de segurança”. Assim, talvez O Processo seja, em essência, uma obra para consumo externo, uma apresentação para a comunidade internacional de um rito que, disfarçado como algo legítimo, tinha um objetivo meramente político de remover um governo eleito democraticamente.
(Não acho que seja absurdo supor que acabei de perder uns 40% dos leitores que já tinham chegado até o fim do parágrafo anterior sem gritar “comunista maldito” e socar a tela do computador ou do dispositivo móvel; portanto, um abraço revolucionário mortadelístico bolivariano para os que seguem a leitura.)
Enriquecida pelo acesso obtido por Ramos aos bastidores do julgamento, o documentário leva o público para as reuniões nas quais os senadores que atuavam em defesa de Dilma discutiam e traçavam suas estratégias e argumentações, estudando os pontos da acusação e rebatendo-os articuladamente. Não que tivessem qualquer ilusão quanto ao desfecho do processo – fica claro, no filme, que os esquerdistas sabiam (como todos sabíamos) que “culpa” não era algo com o qual os julgadores se encontravam preocupados. Ainda assim, é com choque e frustração que figuras como Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias recebem as decisões arbitrárias da comissão presidida por Raimundo Lira que impedem sem quaisquer disfarces que a defesa possa ser exercida de forma plena.
Ciente de que os detalhes do julgamento provavelmente não chegaram à maior parte da população, a diretora emprega um bom tempo do filme para explicar o que eram as tais “pedaladas” e como, essencialmente, a justificativa para depor Dilma vieram de três decretos de crédito suplementar – e, até para equilibrar um pouco a narrativa, Ramos inclui imagens do Cássio Cunha Lima (PSDB) detalhando para a imprensa as acusações. Aliás, O Processo traz imagens de arquivo de elementos como Eduardo Cunha, Romero Jucá, Álvaro Dias e, claro, Aécio Neves, sendo interessante notar como, por outro lado, Michel Temer permanece fora da tela, refletindo sua atuação nos bastidores do rito. (Vale apontar, também, que a maior parte dos senadores da direita se recusou a dar acesso à equipe do filme.) Do mesmo modo, Dilma também mal aparece – e, quando a vemos, são em instantes nos quais teve que se manifestar oficialmente sobre o processo, seja ao depor no Senado, seja ao discursar depois de derrubada – e, em seu lugar, Hoffmann, Farias e José Eduardo Cardozo assumem o centro da narrativa ao desempenharem papéis específicos: a primeira, como líder estratégica do grupo; o segundo, como o combatente mais ferrenho; e o terceiro, como o eloquente e inteligente responsável oficial pela defesa.
Sem jamais identificar os “personagens” com legendas e sem incluir entrevistas exclusivas (as que estão no filme foram concedidas a outros veículos), O Processo extrai seu nome da obra de Kafka por motivos patentes, já que a frustração provocada pelo absurdo de um sistema que acusa sem transparência, que impede a defesa de trabalhar e usa tecnicalidades para tentar condenar reflete todos os obstáculos enfrentados por Joseph K. naquele livro. Chega a ser motivo de piada, por exemplo, o espanto de Cardozo diante de argumentos estapafúrdios da acusação e de deturpações óbvias da lei (como considerar subsídios agrícolas como empréstimos). Aliás, por falar em piada, boa parte das risadas provocadas pelo longa – e na sessão em Berlim houve muitas – são originadas pelas ações da advogada Janaína Paschoal (como seus aquecimentos físicos antes do julgamento), por suas falas (como ao usar uma sessão do Senado para tirar satisfações pessoais) e por seus trejeitos e maneirismos. Curiosamente, um efeito interessante desta proximidade é tornar Paschoal uma figura quase simpática em função de suas excentricidades – e eu não ficaria espantado caso ela aprove a maneira como é retratada por Ramos.
Enquanto isso, a montagem de Karen Akerman, além de organizar a quantidade absurda de material em uma forma didática e elucidativa, inclui sequências que funcionam quase como vinhetas que permitem uma pausa no excesso de informações, mostrando, em planos gerais, o cotidiano de Brasília (e ilustrando, com isso, como a vida seguia normal para boa parte da população). Em contrapartida, os momentos nos quais apenas seguimos senadores ou Cardozo em carros ou enquanto caminham acabam quebrando um pouco o ritmo da projeção, o que é uma pena, mas também um pecado menor.
Revelando uma Dilma que, mesmo na posição de acusada, revela mais serenidade do que seus algozes, O Processotermina apropriadamente com uma literal cortina de fumaça, que funciona como lembrança dos conflitos que dominaram o país nos últimos anos e do verdadeiro propósito do “impeachment”: permitir, no caos que dominou a sociedade (e comprovando pela enésima vez o que Naomi Klein escreveu em seu “A Doutrina do Choque”), “reformas” que levam mais a quem tem tudo e tiram de quem já pouco tinha. Esta imagem, aliás, é a única que realmente se apresenta como uma posição editorial sem ambiguidades.
No restante do tempo, quem faz a editorialização de O Processo é a História.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Berlim 2018.
22 de Fevereiro de 2018
Para uma parte imensa da população brasileira, o debate sobre o golpe de estado de 2016 e o processo de desagregação social aberto como consequência deste está completamente interditado pelo oligopólio midiático. Em alguns raros momentos, seja nas discussões sobre os ataques ao colchão de proteção social construído desde 1930, seja nos debates sobre a resolução da crise política, as vozes dissonantes que se opõem ao modelo de sociedade que vem sendo colocado em prática a toque de caixa desde agosto de 2016 encontram brechas. Sem dúvida alguma o maior desses “chapéus” dados sobre o oligopólio midiático foi o desfile da Paraíso do Tuiuti, quando por cerca de uma hora o desmonte da CLT foi duramente atacado em um dos programas de maior audiência da televisão brasileira. O documentário O processo (2018), dirigido por Maria Augusta Ramos, com algum tipo de mediação, pode ser comparado ao desfile da escola de samba. Em certo sentido, o filme é um grito de “Pera aí! Não foi bem assim!”. Isto se o documentário conseguir romper os curtos circuitos da distribuição comercial (o filme entrou em cartaz no dia 17 de maio).
Montado de maneira simples, sem grandes artifícios e com uma narrativa cronológica, Maria Augusta Ramos aponta sua câmera para os senadores do PT e os acompanha da abertura do processo de impeachment pela Câmara dos Deputados até o seu desfecho em 31 de agosto de 2016. Em uma das primeiras reuniões filmadas pela documentarista, o grupo admite claramente ser este “um jogo de cartas marcadas”, sendo sua função apenas a de tentar deslegitimar e desgastar politicamente o processo, missão que o documentário assume com muita competência. Extremamente didático em relação às enfadonhas discussões sobre pedaladas fiscais, o filme explica claramente o que ninguém conseguiu ou teve espaço de explicar: não foram as manobras fiscais que derrubaram a presidenta. O processo (o concreto, não o filme) foi um mero ritual, uma mera formalidade para a concreção de algo mais brutal.
E brutais são os personagens. De ambos os lados. Livre das blindagens e maquiagens midiáticas, os perpetradores do impeachment ganham outra dimensão. As performances ao longo das sessões de Antônio Anastasia, Cássio Cunha Lima, Janaína Paschoal, o balbuciante Aloysio Nunes Ferreira e grande elenco, comprovam, como afirmou o professor Marcos Nobre em recente entrevista, um dos aspectos mais nefastos da crise política em que nos enfiamos: a tentativa desesperada de atores irrelevantes se transformarem em relevantes. Sob essa perspectiva, a de “empoderamento dos irrelevantes”, a verdade é que o processo (o filme e o concreto) acabaram quase que por osmose dando relevância a tantos outros irrelevantes. Gleise Hoffman, Lindberg Farias e José Eduardo Cardozo ganham uma grandeza que não têm. É irresistível – e em certos aspectos deprimente, sob qualquer perspectiva – comparar o estado maior petista de O processo com aquele de Entreatos(2004), de João Moreira Salles. Gilberto Carvalho, um dos sobreviventes doEntreatos, tem no novo documentário uma importante participação, ao elaborar uma autocrítica – mais para um mea-culpa – feita sob medida para muitos grupos críticos aos governos do PT, mas que se organizaram nas ruas para tentar influir no processo (concreto). O simpático aceno de Gilberto Carvalho vem tarde. A rua, local onde o PT se construiu, foi negligenciada, quando não combatida pelo partido, desde o Entreatos. E a rua foi conscientemente deixada de lado durante o processo (concreto), apesar dos apelos da senadora Fátima Bezerra. Só restou o “jogo de cartas marcadas”, quando o vaidoso José Eduardo Cardozo se ilude ao acreditar que está expondo a ilusão da legalidade do processo (mais uma vez o concreto). A contradição entre forma e conteúdo é escandalosa para o professor de direito que não passa de um idiot savant.
Segundo Michel Vovelle, a fé cega dos constitucionalistas do regime do Diretório inaugurado no ano III da Revolução Francesa (1795) no equilíbrio entre os diversos poderes da república fez com que estes notáveis burgueses negligenciassem qualquer recurso para o caso de um conflito insolúvel entre os poderes Executivo e Legislativo. Por outro lado, alguns contemporâneos – menos ingênuos que os defensores da versão montesquiana da mão invisível equilibristas – chegaram a se perguntar se o golpe de estado não era a única solução concreta para consecução do ideal equilíbrio dos poderes. O processo (o concreto e o filme) expõe de maneira melancólica o preço pago pela ingenuidade do Partido dos Trabalhadores de acreditar na mão invisível e impessoal que regularia as relações políticas da República. Desdobramento quase óbvio da crença na possibilidade de minorar as desigualdades sociais fundamentais do país sob a égide da mão invisível do mercado.
*Fernando Sarti Ferreira é doutorando do programa de História Econômica da Universidade de São Paulo.
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