(Catanduva, 1976) é um jurista e filósofo do direito marxista brasileiro.
É Professor de graduação e do programa de pós-graduação lato sensu da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco - USP)
e da Universidade de Santa cecília (UNISANTA - Santos). Livre-Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo.
Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo. Advogado. Professor Emérito e implantador de Cursos de Graduação
e Pós-Graduação em Direito em várias instituições no Brasil.
Autor, dentre outros livros, de "Crise e Golpe", sobre a crise político-econômica no Brasil de 2014, e "Estado e Forma Política", ambos da Editora Boitempo.
Pela Editora Atlas, é autor de "Filosofia do Direito" e "Introdução ao Estudo do Direito".
Mascaro atua principalmente nos seguintes temas: Filosofia e Teoria Geral do Direito, Marxismo, Estado e Política.
Descrição: O Direito da Saúde, compreendido como o sistema normativo jurídico objetivo que regula as atividades sanitárias
e a produção e distribuição de bens e serviços de saúde, apresenta desafios significativos nas mais diversas regiões do mundo.
No Brasil, particularmente, as dificuldades financeiras e técnicas de atenção universal mediante o SUS (Sistema Único de Saúde)
abre campo para a oferta privada direta, ou mediante instrumentos de saúde suplementar.
Tal situação cria um ambiente complexo, em que relações de oferta de bens e serviços públicos a partir de uma lógica universal
compete com instrumentos privados, os quais raramente podem ser considerados como pura e simplesmente pautados pelo livre mercado.
Destarte, ações estatais de política de oferta se combinam com instrumentos regulatórios, os quais não se restringem à
ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) e à ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), mas se espraiam por outras instâncias normativas
e de estabelecimento de políticas públicas. Nesse contexto, é necessário cotejar os instrumentos regulatórios e seu emprego com a análise
e avaliação econômica da produção e distribuição dos bens e serviços de saúde. Para tanto, programa-se um amplo levantamento dos instrumentos
regulatórios e a estrutura orgânica e institucional associada, de modo a verificar, tanto em âmbito nacional, quanto estadual e local,
a efetividade de tais meios e as possíveis alternativas..
Integrantes: Alysson Leandro Barbate Mascaro - Coordenador / Jose Augusto Fontoura Costa - Integrante / Renato Poltronieri - Integrante.
Descrição: Na proposição de divisão da filosofia do direito contemporânea em três grandes continentes, juspositivismos, não-juspositivismos e
filosofias críticas do direito, cada uma dessas correntes apresenta características e impasses próprios, que conformam o campo de sua problemática teórica.
Enquanto para os primeiros trata-se de compor um inventário do estado atual das técnicas da operação jurídica,
tentando sempre integrar-lhe mais e mais ferramentas de ação, para o não-juspositivismo a questão principal é justamente a problematização
dos valores e dos campos de ação sobre os quais repousa essa técnica. É dizer que, para estes, cumpre prioritariamente indagar sobre as nervuras
do poder que institui e dá possibilidade de existência e legitimidade à esfera do jurídico. Mas apenas à altura do enfoque crítico é que podemos
colocar tanto a técnica quanto a teia do poderio que o delimita em perspectiva. Assim, só a teoria crítica é capaz de inserir o fenômeno do direito
na totalidade estruturada do mundo contemporâneo, dando não apenas as razões do seu ser, mas estabelecendo os parâmetros da sua permanência,
transformação e eventual desmoronamento. Por isso, a terceira perspectiva impõe-se como marco incontornável e ponto alto do estudo jusfilosófico.
O Projeto de Pesquisa está vinculado ao Grupo de Pesquisa "A Crítica do Direito e a Subjetividade Jurídica: Sujeito e Sujeito de direito
no Debate Marxista e Pós-Marxista Contemporâneo" O grupo de pesquisa tem por escopo o fomento da pesquisa científica no âmbito, especialmente,
da Filosofia e da Teoria Geral do Direito, mediante a investigação da temática da subjetividade jurídica,
no contexto do debate marxista e pós-marxista contemporâneo. Tal investigação realizada em conjunto e individualmente possibilitará o preparo teórico
e metodológico dos alunos participantes para a análise crítica do fenômeno jurídico tal qual se apresenta na sociedade capitalista,
bem como para a produção bibliográfica independente..
Cidadania e Direito pelo olhar da Filosofia: Política, Regulação Econômica e Direito
Descrição: Investiga-se a conexão entre os fenômenos jurídicos e políticos a partir do referencial da filosofia marxista,
explicitando as formas estruturais da reprodução social e política no capitalismo. A pesquisa é somada aos estudos já empreendidos pelo Grupo de Pesquisa desde 2004.
Foca-se na relação entre Estado e capitalismo, com o fim de escolhas político-econômicas, tomando por base o papel do direito e do Estado nas crises econômicas,
bem como na reconfiguração das relações sociais. Parte-se dos estudos teóricos de Marx e Pachukanis, também a teoria marxista francesa da regulação,
a teoria da derivação do Estado (Joachim Hirsch). Será realizado o estudo do caso dos juros bancário no Poder Judiciário para a compreensão da atuação do Estado
junto ao Poder Econômico. As produções específicas do grupo estão vinculadas aos currículos lattes dos participantes, incluindo artigos de periódicos,
livros completos e capítulos, apresentação de trabalhos, orientações e demais produções técnicas..
Cidadania e Direito pelo olhar da Filosofia: Direito, Estado, Política e Capitalismo.
Descrição: O Grupo de Pesquisas 'Cidadania e Direito pelo olhar da Filosofia: Direito, Estado, Política e Capitalismo', sob a orientação do Professor Responsável,
Prof. Dr. Alysson Leandro Mascaro, investiga as conexões entre os fenômenos jurídicos e políticos contemporâneos a partir dos instrumentos da filosofia crítica marxista,
explicitando as formas estruturais da reprodução social e política no capitalismo. A pesquisa sobre direito e Estado soma-se aos estudos já empreendidos
sobre a tipologia da ação jurídica e política a partir das leituras dos filósofos Georg Lukács e Ernest Bloch, bem como acerca da tipologia da ação jurídica
e política na teoria marxista, a partir da Teoria Crítica, o Grupo de Pesquisas inicia um novo movimento. O escopo de análise presente tem por foco as relações
da infraestrutura econômica capitalista com o Estado, em especial no quadro da crise atual do sistema. Na economia capitalista, a forma jurídica desempenha,
junto com a forma política estatal, papel fundamental na estruturação e na reprodução da forma mercadoria. Por seus mecanismos, direito e Estado participam
decisivamente na constituição e na regulação das relações sociais. Os estudos serão guiados por meio de uma tradição de idéias que remonta a Karl Marx,
passando por Evgeny Pachukanis e chegando, até o presente, no pensamento de Joachim Hirsch. As produções específicas do grupo estão vinculadas aos currículos lattes
dos participantes..
Cidadania e Direito pelo olhar da Filosofia: Tipologia da Ação Jurídica e Política na Teoria Marxista
Descrição: O projeto de pesquisa envolve alunos de Pós-Graduação "Stricto Sensu" e de Graduação em torno do aprofundamento e da sistematização da visão da cidadania,
da política e do direito pelo olhar da filosofia marxista. No ano de 2009, iniciando as atividades, a pesquisa consistiu na análise vertical dos textos políticos
e jurídicos de Marx. No ano de 2010, o grupo de pesquisa trabalha com a análise vertical dos textos políticos e jurídicos da tradição marxista do século XX..
Situação: Concluído; Natureza: Pesquisa.
Descrição: Durante o ano de 2005, o projeto teve o financiamento do Fundo MACKPESQUISA, ocasiao em que pode iniciar uma nova etapa do trabalho contando
com a colaboracao de alunos bolsistas da graduacao e pos-graduação. No final do ano, o grupo de pesquisa realizou um primeiro levantamento bibliográfico
geral sobre o tema, seguindo o cronograma estabelecido no projeto. Em 2006, com a inserção de novos pesquisadores, os estudos tomaram um novo foco,
com a proposição da divisão dos estudos em dois sub-grupos: 1) Cidadania, Constituição e Estado Democrático de Direito, no qual se realizou o estudo do conceito
de cidadania no tempo e no espaço, observando seus reflexos no surgimento e evolução das Constituições, bem como nos modelos de Estado e de suas funções socioeconômicas;
2) Direito e democracia na teoria política contemporânea, no qual se realizou o estudo em duas vertentes: primeiro, pesquisar o sentido que se dá ao termo
democracia contemporaneamente e sua relação com o conceito de cidadania em algumas das mais importantes elaborações teóricas e segundo, analisar de que forma essas
teorias podem contribuir para uma reflexão sobre a consolidação da democracia no Brasil. O projeto de pesquisa serviu como contributo jusfilosófico à fundamentação
da linha de pesquisa do Programa de Pós-Graduação..
Financiador(es): Universidade Prebisteriana Mackenzie - Auxílio financeiro.
Cidadania e Direito pelo olhar da Filosofia: Uma nova tipologia da ação política a partir de Bloch e Lukács
Descrição: Lukács e Bloch são pensadores que se destacam na primeira metade do século XX, e suas proposições fazem parte de um certo humanismo que permeou a filosofia
crítica de tal época. Seus diagnósticos da sociedade capitalista contemporânea são bastante incisivos na busca de alcançar as razões espirituais e ideológicas
que se imiscuem às razões políticas e econômicas deste tipo social. Pode-se dizer que este humanismo crítico não logrou, até o presente,
influenciar a tomada de posição política do mundo ocidental na busca de libertação e transformação. Resgatar seus pressupostos e sua lógica interna,
além de seus objetivos e utopias, é parte de um projeto maior de concretização de uma nova cidadania e de um novo direito.
Para uma sociedade jovem e gravemente marcada pela injustiça e pela falta de sentido, como a brasileira, Lukács e Bloch hão de se revelar como instrumentais de
instigantes reflexões. Para isso, é preciso resgatar o que há de eminentemente jusfilosófico na produção de tais pensadores, situando historicamente seu contexto,
procedendo a uma análise estrutural de suas idéias, e incitando, posteriormente, uma projeção de suas reflexões de filosofia do direito na sociedade brasileira atual..
Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução*
Karl Marx
Na Alemanha, a crítica da religião está, no essencial, terminada; e a
crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica.
A existência profana do erro está comprometida, depois que sua
celestial oratio pro aris et focis** foi refutada. O homem, que na realidade
fantástica do céu, onde procurava um super-homem, encontrou
apenas o reflexo de si mesmo, já não será tentado a encontrar apenas
a aparência de si, o inumano, lá onde procura e tem de procurar sua
autêntica realidade.
Este é o fundamento da crítica irreligiosa: o homem faz a religião,
a religião não faz o homem. E a religião é de fato a autoconsciência e
o autossentimento do homem, que ou ainda não conquistou a si mesmo
ou já se perdeu novamente. Mas o homem não é um ser abstrato,
acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado,
a sociedade. Esse Estado e essa sociedade produzem a religião, uma
consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido.
A religião é a teoria geral deste mundo, seu compêndio enciclopédico,
sua lógica em forma popular, seu point d’honneur *** espiritualista, seu
entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua base geral
de consolação e de justificação. Ela é a realização fantástica da essência
humana, porque a essência humana não possui uma realidade verdadeira.
Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, contra
aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião.
* O texto “Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie – Einleitung” foi escrito entre dezembro
de 1843 e janeiro de 1844 e publicado nos Anais Franco-Alemães (Deutsch-
Französische Jahrbücher) em 1844. Traduzido por Rubens Enderle e publicado pela
Boitempo no livro Crítica da filosofia do direito de Hegel (2010). (N. E.)
** “Oração para altar e fogão.” (N. E.)
*** “Ponto de honra.” (N. T.)
A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria
real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da
criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o
espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo.
A supressão [Aufhebung] da religião como felicidade ilusória do
povo é a exigência da sua felicidade real. A exigência de que abandonem
as ilusões acerca de uma condição é a exigência de que abandonem uma
condição que necessita de ilusões. A crítica da religião é, pois, em germe,
a crítica do vale de lágrimas, cuja auréola é a religião.
A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que
o homem suporte grilhões desprovidos de fantasias ou consolo, mas
para que se desvencilhe deles e a flor viva desabroche. A crítica da religião
desengana o homem a fim de que ele pense, aja, configure a sua
realidade como um homem desenganado, que chegou à razão, a fim de
que ele gire em torno de si mesmo, em torno de seu verdadeiro sol. A
religião é apenas o sol ilusório que gira em volta do homem enquanto
ele não gira em torno de si mesmo.
Portanto, a tarefa da história, depois de desaparecido o além da
verdade, é estabelecer a verdade do aquém. A tarefa imediata da filosofia,
que está a serviço da história, é, depois de desmascarada a forma
sagrada da autoalienação [Selbstentfremdung] humana, desmascarar a
autoalienação nas suas formas não sagradas. A crítica do céu transforma-
se, assim, na crítica da terra, a crítica da religião, na crítica do
direito, a crítica da teologia, na crítica da política.
A exposição que se segue* – uma contribuição a esse trabalho – não
se ocupa diretamente do original, mas de uma cópia, a filosofia alemã
do Estado e do direito, pela simples razão de se referir à Alemanha.
Se nos ativermos ao status quo alemão, mesmo que da única maneira
adequada, isto é, negativamente, o resultado permaneceria um
anacronismo. Mesmo a negação de nosso presente político é já um fato
empoeirado no quarto de despejo histórico das nações modernas. Se
nego as perucas empoadas, fico ainda com as perucas desempoadas.
Quando nego a situação alemã de 1843, não me encontro nem mesmo,
segundo a cronologia francesa, no ano de 1789, quanto menos no centro
vital do período atual.
A história alemã, é verdade, orgulha-se de um desenvolvimento que
nenhuma nação no firmamento histórico realizou antes dela ou chegará
um dia a imitar. Tomamos parte nas restaurações das nações modernas,
sem termos tomado parte nas suas revoluções. Fomos restaurados
primeiramente porque outras nações ousaram fazer uma revolução e,
em segundo lugar, porque outras nações sofreram contrarrevoluções;
no primeiro caso, porque nossos senhores tiveram medo e, no segundo,
porque nada temeram. Tendo nossos pastores à frente, encontramo-nos
na sociedade da liberdade apenas no dia do seu sepultamento.
Uma escola que legitima a infâmia de hoje pela de ontem, que considera
como rebelde todo grito do servo contra o açoite desde que este seja
um açoite venerável, ancestral e histórico; uma escola à qual a história,
tal como o Deus de Israel fez com o seu servo Moisés, só mostra o seu
* Marx refere-se à sua intenção de publicar um estudo crítico da Filosofia do direito de
Hegel, a que o presente ensaio serviria de introdução. O estudo crítico corresponde ao
texto aqui publicado, nas páginas que antecedem esta introdução. (N. E.)
a posteriori – a Escola histórica do direito* –, tal escola teria, assim, inventado
a história alemã, não fosse ela uma invenção da história alemã.
Um Shylock, mas um Shylock servil, que sobre seu título de crédito,
seu título de crédito histórico, germânico-cristão, jura por cada libra de
carne cortada do coração do povo.
Em contrapartida, entusiastas bonacheirões, chauvinistas alemães
por sangue e liberais esclarecidos por reflexão buscam nossa história de
liberdade além de nossa história, nas primitivas florestas teutônicas. Mas,
se ela só pode ser encontrada nas florestas, em que se diferencia a história
da nossa liberdade da história da liberdade do javali? Além disso, é
conhecido o provérbio: o que para dentro da floresta se grita, para fora
da floresta ecoa. Assim, deixemos em paz as antigas florestas teutônicas!
Mas declaremos guerra à situação alemã! Sem dúvida! Ela está abaixo
do nível da história, abaixo de toda a crítica; não obstante, continua
a ser um objeto da crítica, assim como o criminoso, que está abaixo do
nível da humanidade, continua a ser um objeto do carrasco. Em luta
contra ela, a crítica não é uma paixão da cabeça, mas a cabeça da paixão.
Não é um bisturi, mas uma arma. Seu objeto é seu inimigo, que
ela quer não refutar, mas destruir. Pois o espírito de tal situação já está
* Tendência nas ciências históricas e jurídicas que surgiu na Alemanha no fim do século
XVIII. Seu representante mais destacado foi o jesuíta F. K. von Savigny. (N. T.)
Savigny, defensor da tese de que o direito refletia a própria “alma” de um povo – sua
cultura, seus costumes –, sendo, portanto, refratário a qualquer reformulação do direito
orientada pelos princípios racionalistas, foi professor de Marx na Universidade
de Berlim entre 1836 e 1837 e o influenciou quanto ao método de estudo, já que era
uma prerrogativa da Escola Histórica o estudo exegético dos textos e documentos
relacionados ao seu objeto de investigação. Entretanto, muito maior impacto na formação
intelectual de Marx teve o principal adversário de Savigny, Eduard Gans, um
hegeliano de tendências progressistas – bastante influenciado por Saint-Simon – que
propugnava que as leis deveriam ser constantemente transformadas de modo a acompanharem
o próprio desenvolvimento da Ideia. (N. E.)
refutado. Ela não constitui, em si e para si, um objeto memorável, mas
sim uma existência tão desprezível como desprezada. A crítica para si
não necessita de ulterior elucidação desse objeto, porque já o compreendeu.
Ela não se apresenta mais como fim em si, mas apenas como meio.
Seu pathos essencial é a indignação, seu trabalho essencial, a denúncia.
Trata-se de retratar uma pressão sufocante que todas as esferas sociais
exercem umas sobre as outras, uma irritação geral, passiva, uma
estreiteza que tanto reconhece como ignora a si mesma, situada nos
limites de um sistema de governo que vive da conservação de todas as
indigências, não sendo ele mesmo mais do que a indigência no governo.
Que espetáculo! A infinita e progressiva divisão da sociedade nas
mais diversas raças, que se defrontam umas às outras com pequenas
antipatias, má consciência e grosseira mediocridade; que, precisamente
por causa de sua situação alternadamente ambígua e suspeitosa, são
tratadas, sem exceção, mesmo que com diferentes formalidades, como
existências concedidas por seus senhores. E até mesmo o fato de serem
dominadas, governadas, possuídas, elas têm de reconhecer e admitir
como uma concessão do céu! Do outro lado, encontram-se os próprios
governantes, cuja grandeza está em proporção inversa ao seu número!
A crítica que se ocupa desse conteúdo é a crítica num combate corpo
a corpo, e nele não importa se o adversário é nobre, bem-nascido, se é
um adversário interessante – o que importa é atingi-lo. Trata-se de não
conceder aos alemães um instante sequer de autoilusão e de resignação.
É preciso tornar a pressão efetiva ainda maior, acrescentando a ela a
consciência da pressão, e tornar a ignomínia ainda mais ignominiosa,
tornando-a pública. É preciso retratar cada esfera da sociedade alemã
como a partie honteuse* da sociedade alemã, forçar essas relações petri
* “Parte vergonhosa.” (N. T.)
ficadas a dançar, entoando a elas sua própria melodia! É preciso ensinar
o povo a se aterrorizar diante de si mesmo, a fim de nele incutir coragem.
Assim satisfaz-se uma necessidade do povo alemão, e as necessidades
dos povos são propriamente as causas finais da sua satisfação.
E mesmo para os povos modernos, essa luta contra o teor limitado
do status quo alemão não carece de interesse, pois o status quo alemão
é a perfeição manifesta do ancien régime,e o ancien régime é o defeito
oculto do Estado moderno. A luta contra o presente político alemão é
a luta contra o passado das nações modernas, e estas continuam a ser
importunadas pelas reminiscências desse passado. Para as nações modernas,
é instrutivo assistir ao ancien régime, que nelas viveu sua tragédia,
desempenhar uma comédia como fantasma alemão. Trágica foi sua
história, porque ele era o poder preexistente do mundo, ao passo que a
liberdade, ao contrário, era uma fantasia pessoal; numa palavra, porque
ele mesmo acreditou em sua legitimidade e nela tinha de acreditar. Na
medida em que o ancien régime, como ordem do mundo existente, lutou
contra um mundo que estava então a emergir, ocorreu de sua parte
um erro histórico-mundial, mas não um erro pessoal. Seu declínio foi,
por isso, trágico.
Em contrapartida, o atual regime alemão, que é um anacronismo,
uma flagrante contradição de axiomas universalmente aceitos – a nulidade
do ancien régime exposta ao mundo – imagina apenas acreditar
em si mesmo e exige do mundo a mesma imaginação. Se acreditasse
na sua própria essência, tentaria ele ocultá-la sob a aparência de uma
essência estranha e buscar sua salvação na hipocrisia e no sofisma? O
moderno ancien régime é apenas o comediante de uma ordem mundial
cujos heróis reais estão mortos. A história é sólida e passa por muitas
fases ao conduzir uma forma antiga ao sepulcro. A última fase de uma
forma histórico-mundial é sua comédia. Os deuses da Grécia, já mor
talmente feridos na tragédia Prometeu acorrentado, de Ésquilo, tiveram
de morrer uma vez mais, comicamente, nos diálogos de Luciano. Por
que a história assume tal curso? A fim de que a humanidade se separe
alegremente do seu passado. É esse alegre destino histórico que reivindicamos
para os poderes políticos da Alemanha.
Mas logo que a própria moderna realidade político-social é submetida
à crítica, logo que, portanto, a crítica se eleva aos problemas verdadeiramente
humanos, ela se encontra fora do status quo alemão ou apreende
o seu objeto sob o seu objeto. Um exemplo: a relação da indústria, do
mundo da riqueza em geral, com o mundo político é um dos problemas
fundamentais da era moderna. Sob que forma começa este problema a
preocupar os alemães? Sob a forma de tarifas protecionistas, do sistema
de proibição, da economia política. O chauvinismo alemão passou dos
homens para a matéria e, assim, nossos cavaleiros do algodão e heróis
do ferro viram-se, um belo dia, metamorfoseados em patriotas. Na Alemanha,
portanto, começa-se agora a reconhecer a soberania do monopólio
no interior do país, por meio da qual se confere ao monopólio a
soberania no exterior. Por conseguinte, na Alemanha começa-se, agora,
com aquilo que já terminou na França e na Inglaterra. A situação antiga,
apodrecida, contra a qual essas nações se rebelam teoricamente e que
apenas suportam como se suportam grilhões, é saudada na Alemanha
como a aurora de um futuro glorioso que ainda mal ousa passar de uma
teoria astuta* a uma prática implacável. Enquanto na França e na Inglaterra
o problema se apresenta assim: economia política ou domínio da
sociedade sobre a riqueza; na Alemanha ele é apresentado da seguinte
* Listig, em alemão, astuto. Jogo de palavras com o nome de Friedrich List (1789-1846):
economista e defensor do protecionismo, teórico da burguesia ascendente nos anos
anteriores a 1848 e promotor da união alfandegária (Zolverein), da qual aproveitava-se,
também, a Prússia. (N. T.)
maneira: economia nacional ou domínio da propriedade privada sobre
a nacionalidade. Portanto, na França e na Inglaterra, importa suprimir
o monopólio que progrediu até as últimas consequências; na Alemanha,
importa progredir até as últimas consequências do monopólio. Lá,
trata-se da solução, aqui, trata-se da colisão. Um exemplo suficiente da
forma alemã dos problemas modernos; um exemplo de como nossa história,
tal como um recruta inexperiente, até agora só recebeu a tarefa de
exercitar-se repetidamente em assuntos históricos envelhecidos.
Se o desenvolvimento alemão inteiro não fosse além do seu desenvolvimento
político, um alemão poderia tomar parte nos problemas do
presente apenas na mesma medida em que um russo pode. Mas se o
indivíduo não é coagido pelas limitações do seu país, ainda menos a
nação é libertada por meio da libertação de um indivíduo. O fato de
a Grécia contar com um cita entre seus filósofos* não fez com que os
citas dessem um passo sequer em direção à cultura grega.
Felizmente, nós, os alemães, não somos citas.
Assim como as nações do mundo antigo vivenciaram a sua pré-história
na imaginação, na mitologia, nós, alemães, vivenciamos a nossa
pós-história no pensamento, na filosofia. Somos contemporâneos filosóficos
do presente, sem sermos seus contemporâneos históricos. A
filosofia alemã é o prolongamento ideal da história alemã. Quando,
portanto, em vez das oeuvres incomplètes** de nossa história real, criticamos
as oeuvres posthumes*** de nossa história ideal – a filosofia –
então nossa crítica situa-se no centro dos problemas dos quais o presente
diz: that is the question.
O que, para as nações avançadas, constitui uma ruptura prática com as modernas condições políticas é, na
Alemanha, onde essas mesmas condições ainda não existem, imediatamente
uma ruptura crítica com a reflexão filosófica dessas condições.
* Marx refere-se, aqui, a Anacarsis, cita de nascimento, colocado pelos gregos, segundo
Diógenes Laércio, entre os sete sábios da Grécia. (N. T.)
** “Obras incompletas.” (N. T.)
***“Obras póstumas.” (N. T.)
A filosofia alemã do direito e do Estado é a única história alemã situada
al pari com o presente moderno, oficial. A nação alemã tem, por
isso, de ajustar a sua história onírica às suas condições existentes e sujeitar
à crítica não apenas essas condições existentes, mas igualmente
sua continuação abstrata. Seu futuro não pode restringir-se nem
à negação direta de suas condições políticas e jurídicas reais, nem à
imediata realização de suas circunstâncias políticas e jurídicas ideais,
pois a negação imediata de suas condições reais está em suas condições
ideais, e ela quase tem sobrevivido à realização de suas condições
ideais na contemplação das nações vizinhas. É com razão, pois, que
o partido político prático na Alemanha exige a negação da filosofia.
Seu erro consiste não em formular tal exigência, mas em limitar-se a
uma exigência que ela não realiza seriamente, nem pode realizar. Crê
ser capaz de realizar essa negação ao murmurar – dando as costas à
filosofia e afastando dela sua cabeça – algumas fraseologias furiosas
e banais sobre ela. Dada a estreiteza de seu ângulo de visão, não considera
que a filosofia encontre-se no mesmo nível da realidade alemã
ou até mesmo a situa falsamente abaixo da prática alemã e das teorias
que a servem. Reivindicais que se deva seguir, como ponto de partida,
o germe da vida real, mas esqueceis que o germe da vida real do povo
alemão brotou, até agora, apenas no seu crânio. Em uma palavra: não
podeis suprimir a filosofia sem realizá-la.
O mesmo erro, apenas com fatores invertidos, cometeu o partido
teórico, oriundo da filosofia.
Na presente luta, esse partido vislumbrou apenas o combate crítico
da filosofia contra o mundo alemão, sem considerar que a própria filosofia até então existente
pertence a esse mundo e constitui seu complemento,
mesmo que ideal. Crítico contra seu oponente, ele se comporta
acriticamente em relação a si mesmo, na medida em que partiu dos
pressupostos da filosofia e ou aceitou seus resultados ou apresentou
como exigências e resultados da filosofia exigências e resultados extraídos
de outros domínios, embora estes – pressupondo-se sua legitimidade
– só possam, ao contrário, ser obtidos pela negação da filosofia até
então existente, da filosofia como filosofia. Reservamo-nos o direito a
uma descrição mais detalhada desse partido. Seu defeito fundamental
pode ser assim resumido: ele acreditou que poderia realizar a filosofia
sem suprimi-la.
A crítica da filosofia alemã do direito e do Estado, que com Hegel
alcançou sua versão mais consistente, rica e completa, consiste tanto
na análise crítica do Estado moderno e da realidade com ele relacionada
como na negação decidida de todo o modo da consciência política e
jurídica alemã, cuja expressão mais distinta, mais universal, elevada ao
status de ciência, é justamente a própria filosofia especulativa do direito.
Se a filosofia especulativa do direito só foi possível na Alemanha – esse
pensamento extravagante e abstrato do Estado moderno, cuja efetividade
permanece como um além, mesmo que esse além signifique tão somente
o além do Reno –, a imagem mental alemã do Estado moderno,
que faz abstração do homem efetivo, só foi possível, ao contrário, porque
e na medida em que o próprio Estado moderno faz abstração do homem
efetivo ou satisfaz o homem total de uma maneira puramente imaginária.
Em política, os alemães pensaram o que as outras nações fizeram.
A Alemanha foi a sua consciência teórica. A abstração e a presunção de
seu pensamento andaram sempre no mesmo passo da unilateralidade
e da atrofia de sua realidade. Se, pois, o status quo do sistema político
alemão exprime o acabamento do ancien régime, o acabamento do espinho na carne do Estado moderno, o status quo da ciência política
alemã exprime o inacabamento do Estado moderno, a deterioração de
sua própria carne.
Já como oponente resoluto da forma anterior da consciência política
alemã, a crítica da filosofia especulativa do direito não deságua em si
mesma, mas em tarefas para cujas soluções há apenas um meio: a prática.
Pergunta-se: pode a Alemanha chegar a uma práxis à la hauteur
des principes*, quer dizer, a uma revolução que a elevará não só ao
nível oficial das nações modernas, mas à estatura humana que será o
futuro imediato dessas nações?
A arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma, o
poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria
também se torna força material quando se apodera das massas. A teoria
é capaz de se apoderar das massas tão logo demonstra ad hominem,
e demonstra ad hominem tão logo se torna radical. Ser radical é agarrar
a coisa pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem. A prova
evidente do radicalismo da teoria alemã, portanto, de sua energia
prática, é o fato de ela partir da superação positiva da religião. A crítica
da religião tem seu fim com a doutrina de que o homem é o ser supremo
para o homem, portanto, com o imperativo categórico de subverter
todas as relações em que o homem é um ser humilhado, escravizado,
abandonado, desprezível. Relações que não podem ser mais bem retratadas
do que pela exclamação de um francês acerca de um projeto de
imposto sobre cães: “Pobres cães! Querem vos tratar como homens!”.
Mesmo historicamente, a emancipação teórica possui uma importância
especificamente prática para a Alemanha. O passado revolucionário
da Alemanha é teórico – é a Reforma. Assim como outrora a re
* “À altura dos princípios.” (N. T.)
volução começou no cérebro de um monge, agora ela começa no cérebro
do filósofo.
Sem dúvida, Lutero venceu a servidão por devoção porque pôs no
seu lugar a servidão por convicção. Quebrou a fé na autoridade porque
restaurou a autoridade da fé. Transformou os padres em leigos, transformando
os leigos em padres. Libertou o homem da religiosidade exterior,
fazendo da religiosidade o homem interior. Libertou o corpo dos
grilhões, prendendo com grilhões o coração.
Mas se o protestantismo não era a verdadeira solução, ele era o
modo correto de colocar o problema. Já não se tratava mais da luta do
leigo com o padre fora dele, mas da luta contra o seu próprio padre interior,
a sua natureza clerical. E se a transformação protestante dos leigos
alemães em padres emancipou os papas leigos, os príncipes em conjunto
com o clero, os privilegiados e os filisteus, a metamorfose filosófica dos
clericais alemães em homens emancipará o povo. Mas, assim como a
emancipação não se limita aos príncipes, tampouco a secularização dos
bens se restringirá à confiscação da propriedade da Igreja, que foi, sobretudo,
praticada pela hipócrita Prússia. Naquele tempo, a Guerra dos
Camponeses, o fato mais radical da história alemã, fracassou por culpa
da teologia. Hoje, com o fracasso da própria teologia, nosso status quo,
o fato menos livre da história alemã, se despedaçará contra a filosofia.
Na véspera da Reforma, a Alemanha oficial era a serva mais incondicional
de Roma. Na véspera de sua revolução, ela é a serva incondicional
de menos do que Roma: da Prússia e da Áustria, dos aristocratas rurais
[Krautjunker] e dos filisteus.
Entretanto, a uma revolução radical alemã parece ser colocada uma
dificuldade fundamental.
As revoluções precisam de um elemento passivo, de uma base material.
A teoria só é efetivada num povo na medida em que é a efetivação de suas necessidades.
Corresponderá à monstruosa discrepância
entre as exigências do pensamento alemão e as respostas da realidade
alemã a mesma discrepância da sociedade civil com o Estado
e da sociedade civil consigo mesma? Serão as necessidades teóricas
imediatamente necessidades práticas? Não basta que o pensamento
procure se realizar; a realidade deve compelir a si mesma em direção
ao pensamento.
Mas a Alemanha não galgou os degraus intermediários da emancipação
política no mesmo tempo em que as nações modernas. Mesmo
os degraus que ela superou teoricamente, ela ainda não alcançou praticamente.
Como poderia ela, com um salto mortale, transpor não só
suas próprias barreiras como também, ao mesmo tempo, a das nações
modernas, barreiras que, na realidade, ela tem de sentir e buscar atingir
como uma libertação de suas próprias barreiras reais? Uma revolução
radical só pode ser a revolução de necessidades reais, para a qual faltam
justamente os pressupostos e o nascedouro.
Mas, se a Alemanha acompanhou o desenvolvimento das nações modernas
apenas por meio da atividade abstrata do pensamento, sem tomar
parte ativa nas lutas reais desse desenvolvimento, ela compartilhou, por
outro lado, das dores desse desenvolvimento, sem compartilhar de seus
prazeres, de suas satisfações parciais. À atividade abstrata, por um lado,
corresponde o sofrimento abstrato, por outro. Por isso, a Alemanha se
encontrará, um belo dia, no nível da decadência europeia sem que jamais
tenha atingido o nível da emancipação. Poder-se-á compará-la a um idólatra
que padece das doenças do cristianismo.
Se examinarmos agora os governos alemães, veremos que, devido
às condições da época, à situação da Alemanha, ao ponto de vista da
formação alemã e, por fim, ao seu próprio instinto afortunado, eles são
levados a combinar as deficiências civilizadas do mundo político moderno,
de cujas vantagens não desfrutamos, com as deficiências bárbaras
do ancien régime, de que fruímos plenamente, de modo que a Alemanha
tem de participar cada vez mais, se não da sensatez, pelo menos da
insensatez das formações políticas que ultrapassam o seu status quo.
Haverá, por exemplo, algum país no mundo que participe tão ingenuamente
de todas as ilusões do regime constitucional sem compartilhar
das suas realidades como a chamada Alemanha constitucional? Ou não
foi necessariamente ideia de um governo alemão combinar os tormentos
da censura com os tormentos das leis francesas de setembro*, que
pressupõem a liberdade de imprensa? Assim como os deuses de todas
as nações se encontravam no Panteão romano, também os pecados de
todas as formas de Estado se encontrarão no Sacro Império Romano-
Germânico. Que esse ecletismo atingirá um grau até então inédito é
garantido, sobretudo, pela glutonaria político-estética de um rei alemão**
que pretende desempenhar todos os papéis da realeza: o papel
feudal e o burocrático, o absoluto e o constitucional, o autocrático e o
democrático, se não na pessoa do povo, pelo menos na sua própria pessoa,
e se não para o povo, ao menos para si mesmo. A Alemanha, como
deficiência da atual política constituída num mundo próprio, não conseguirá
demolir as específicas barreiras alemãs sem demolir as barreiras
gerais da política atual.
* Tomando como pretexto o atentado cometido contra o rei Luís Filipe a 28 de julho de
1835, seu ministro Thiers apresentou no mês seguinte, na Assembleia, um projeto de
lei essencialmente reacionário que entrou em vigor em setembro do mesmo ano. Essas
leis foram chamadas “leis de setembro”. A justiça podia fazer juízos sumários em caso
de rebelião e recorrer a juízes, escolhidos por ela, adotando, ao mesmo tempo, severas
medidas contra a imprensa. Entre estas figuravam o depósito em dinheiro por parte
dos jornais, o encarceramento e altas multas por ataques contra a propriedade privada
e contra o sistema estatal vigente. (N. T.)
** Trata-se de Frederico Guilherme IV. (N. E.)
O sonho utópico da Alemanha não é a revolução radical, a emancipação
humana universal, mas a revolução parcial, meramente política,
a revolução que deixa de pé os pilares do edifício. Em que se baseia
uma revolução parcial, meramente política? No fato de que uma parte
da sociedade civil se emancipa e alcança o domínio universal; que uma
determinada classe, a partir da sua situação particular, realiza a emancipação
universal da sociedade. Tal classe liberta a sociedade inteira,
mas apenas sob o pressuposto de que toda a sociedade se encontre na
situação de sua classe, portanto, por exemplo, de que ela possua ou possa
facilmente adquirir dinheiro e cultura.
Nenhuma classe da sociedade civil pode desempenhar esse papel
sem despertar, em si e nas massas, um momento de entusiasmo em que
ela se confraternize e misture com a sociedade em geral, confunda-se
com ela, seja sentida e reconhecida como sua representante universal;
um momento em que suas exigências e direitos sejam, na verdade, exigências
e direitos da sociedade, em que ela seja efetivamente o cérebro
e o coração sociais. Só em nome dos interesses universais da sociedade
é que uma classe particular pode reivindicar o domínio universal. Para
alcançar essa posição emancipatória e, com isso, a exploração política
de todas as esferas da sociedade no interesse de sua própria esfera,
não bastam energia revolucionária e autossentimento [Selbstgefühl]
espiritual. Para que a revolução de um povo e a emancipação de uma
classe particular da sociedade civil coincidam, para que um estamento
[Stand] se afirme como um estamento de toda a sociedade, é necessário
que, inversamente, todos os defeitos da sociedade sejam concentrados
numa outra classe, que um determinado estamento seja o do escândalo
universal, a incorporação das barreiras universais; é necessário que
uma esfera social particular se afirme como o crime notório de toda a
sociedade, de modo que a libertação dessa esfera apareça como uma
autolibertação universal. Para que um estamento seja par excellence o
estamento da libertação é necessário, inversamente, que um outro estamento
seja o estamento inequívoco da opressão. O significado negativo-
universal da nobreza e do clero francês condicionou o significado
positivo-universal da classe burguesa, que se situava imediatamente ao
lado deles e os confrontava.
Na Alemanha, porém, faltam a todas as classes particulares não
apenas a consistência, a penetração, a coragem e a intransigência que
delas fariam o representante negativo da sociedade. A todos os estamentos
faltam, ainda, aquela grandeza de alma que, mesmo que por um
momento apenas, identifica-se com a alma popular, aquela genialidade
que anima a força material a tornar-se poder político, aquela audácia revolucionária
que lança ao adversário a frase desafiadora: não sou nada
e teria de ser tudo. A cepa principal da moralidade e da honradez alemãs,
não apenas das classes como dos indivíduos, é formada por aquele
modesto egoísmo que afirma sua estreiteza e deixa que ela seja afirmada
contra si mesmo. A relação entre as diferentes esferas da sociedade
alemã não é, portanto, dramática, mas épica. Cada uma delas começa
a conhecer a si mesma e a se estabelecer ao lado das outras com suas
reivindicações particulares, não a partir do momento em que é oprimida,
mas desde o momento em que as condições da época, sem qualquer
ação de sua parte, criam um novo substrato social que ela pode, por sua
vez, oprimir. Até mesmo o autossentimento moral da classe média alemã
assenta apenas sobre a consciência de ser o representante universal
da mediocridade filistina de todas as outras classes. Por conseguinte,
não são apenas os reis alemães que sobem ao trono mal-à-propos*; cada
esfera da sociedade civil sofre uma derrota antes de alcançar sua vitória,
cria suas próprias barreiras antes de ter superado as barreiras que
ante ela se erguem, manifesta sua essência mesquinha antes que sua
essência generosa tenha conseguido se manifestar e, assim, a oportunidade
de desempenhar um papel importante desaparece antes mesmo
de ter existido, de modo que cada classe, tão logo inicia a luta contra a
classe que lhe é superior, enreda-se numa luta contra a classe inferior.
* “Inoportunamente.” (N. T.)
Por isso, o principado entra em luta contra a realeza, o burocrata contra
o nobre, o burguês contra todos eles, enquanto o proletário já começa
a entrar em luta contra os burgueses. A classe média dificilmente ousa
conceber a ideia da emancipação a partir de seu próprio ponto de vista,
e o desenvolvimento das condições sociais, assim como o progresso da
teoria política, já declaram esse ponto de vista como antiquado ou, no
mínimo, problemático.
Na França, basta que alguém queira ser alguma coisa para que
queira ser tudo. Na Alemanha, ninguém pode ser nada se não renunciar
a tudo. Na França, a emancipação parcial é a base da emancipação
universal. Na Alemanha, a emancipação universal é conditio sine
qua non de toda emancipação parcial. Na França, é a realidade, na
Alemanha, é a impossibilidade da libertação gradual que tem de engendrar
a completa liberdade. Na França, cada classe da nação é um
idealista político e se considera, em primeiro lugar, não como classe
particular, mas como representante das necessidades sociais. Assim,
o papel de emancipador é sucessivamente assumido, num movimento
dramático, pelas diferentes classes do povo francês, até alcançar, por
fim, a classe que realiza a liberdade social não mais sob o pressuposto
de certas condições externas ao homem e, no entanto, criadas pela
sociedade humana, mas organizando todas as condições da existência
humana sob o pressuposto da liberdade social. Na Alemanha, ao contrário,
onde a vida prática é tão desprovida de espírito quanto a vida
espiritual é desprovida de prática, nenhuma classe da sociedade civil
tem a necessidade e a capacidade de realizar a emancipação universal,
até que seja forçada a isso por sua situação imediata, pela necessidade
material e por seus próprios grilhões.
Onde se encontra, então, a possibilidade positiva de emancipação
alemã?
Eis a nossa resposta: na formação de uma classe com grilhões radicais,
de uma classe da sociedade civil que não seja uma classe da sociedade
civil, de um estamento que seja a dissolução de todos os estamentos,
de uma esfera que possua um caráter universal mediante seus
sofrimentos universais e que não reivindique nenhum direito particular
porque contra ela não se comete uma injustiça particular, mas a
injustiça por excelência, que já não possa exigir um título histórico, mas
apenas o título humano, que não se encontre numa oposição unilateral
às consequências, mas numa oposição abrangente aos pressupostos do
sistema político alemão; uma esfera, por fim, que não pode se emancipar
sem se emancipar de todas as outras esferas da sociedade e, com
isso, sem emancipar todas essas esferas – uma esfera que é, numa palavra,
a perda total da humanidade e que, portanto, só pode ganhar a si
mesma por um reganho total do homem. Tal dissolução da sociedade,
como um estamento particular, é o proletariado.
O proletariado começa a se formar na Alemanha como resultado do
emergente movimento industrial, pois o que constitui o proletariado
não é a pobreza naturalmente existente, mas a pobreza produzida artificialmente,
não a massa humana mecanicamente oprimida pelo peso da
sociedade, mas a massa que provém da dissolução aguda da sociedade e,
acima de tudo, da dissolução da classe média, embora seja evidente que a
pobreza natural e a servidão cristão-germânica também engrossaram
as fileiras do proletariado.
Quando o proletariado anuncia a dissolução da ordem mundial até
então existente, ele apenas revela o mistério de sua própria existência, uma
vez que ele é a dissolução fática dessa ordem mundial. Quando o proletariado
exige a negação da propriedade privada, ele apenas eleva a princípio
da sociedade o que a sociedade elevara a princípio do proletariado, aquilo
que nele já está involuntariamente incorporado como resultado negativo
da sociedade. Assim, o proletário possui em relação ao mundo que está a
surgir o mesmo direito que o rei alemão possui em relação ao mundo já
existente, quando este chama o povo de seu povo ou o cavalo de seu cavalo.
Declarando o povo como sua propriedade privada, o rei expressa, tão
somente, que o proprietário privado é rei.
Assim como a filosofia encontra suas armas materiais no proletariado,
o proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais, e tão logo
o relâmpago do pensamento tenha penetrado profundamente nesse ingênuo
solo do povo, a emancipação dos alemães em homens se completará.
Façamos um resumo dos resultados:
A única libertação praticamente possível da Alemanha é a libertação
do ponto de vista da teoria que declara o homem como o ser supremo
do homem. Na Alemanha, a emancipação da Idade Média só é
possível se realizada simultaneamente com a emancipação das superações
parciais da Idade Média. Na Alemanha, nenhum tipo de servidão
é destruído sem que se destrua todo tipo de servidão. A profunda Alemanha
não pode revolucionar sem revolucionar desde os fundamentos.
A emancipação do alemão é a emancipação do homem. A cabeça dessa
emancipação é a filosofia, o proletariado é seu coração. A filosofia não
pode se efetivar sem a suprassunção [Aufhebung] do proletariado, o
proletariado não pode se suprassumir sem a efetivação da filosofia.
Quando estiverem realizadas todas as condições internas, o dia da
ressurreição alemã será anunciado pelo canto do galo gaulês.
Nenhum comentário:
Postar um comentário